Pequenas Notas

Paulo Pires

Deus é inocente, a Imprensa não

Por causa desta coluna, pessoas ingênuas e de bom coração certamente ficarão furiosas comigo. Antecipo a bronca e peço indulgência aos leitores, rogando que não me queiram mal. A realidade é um dado concreto contra a qual não me insurjo mais, mesmo que quisesse modificá-la. Aprendi que fenômenos ocorrem e se não for possível nos anteciparmos a eles, o melhor é nos resignarmos com as suas ocorrências. Por outro lado, dado o espírito de liberdade que norteia minha visão de mundo, não deixo de dar razão a quem fica aborrecido com este pobre escriba. O título acima [Deus é Inocente, a Imprensa não] refere-se a um livro do jornalista Carlos Dornelles, o qual passou muito longe da receptividade que deveria ter. As razões são óbvias. A Imprensa jamais daria propagação a algo que vai de encontro aos seus interesses. Mas, admito isso não é atitude comum apenas a Imprensa. Todas as pessoas e todas as Instituições quando se deparam com algo que não lhes são favoráveis [eu inclusive] fazemos ouvidos de mercador. O mundo é feito de interesses. O resto é papo furado.

 Abaixo transcrevo um breve ensaio do livro de Carlos Dornelles, feito pelo historiador e escritor Viegas Fernandes da Costa, editor do site de Literatura Sarau Eletrônico da Universidade Regional de Blumenau:

 Após os atentados de 11 de setembro de 2001 contra alvos nos Estados Unidos, a imprensa ocidental passou a reforçar a tese de uma guerra de civilizações tendo, como pano de fundo, motivações religiosas. Em nome de Deus, o mundo cristão enfim “civilizaria” o mundo islâmico. Em nome de Deus, em nova cruzada, impor-se-ia a democracia ao Oriente. Em nome de Deus, Bush declarava guerra ao Afeganistão. Em nome de Deus estraçalhou-se o Iraque. E quando as primeiras trombetas já se faziam anunciar, José Saramago em artigo alertava: “Deus está inocente (…). Desconfiem do fator Deus”.

Carlos Dorneles, experiente jornalista brasileiro com passagens por jornais de peso, como Folha da Manhã e Zero Hora, e emissoras de televisão, como RBS e Globo, tendo atuando como correspondente internacional em Londres e Nova York, não só desconfiou como publicou este “Deus é Inocente. A Imprensa Não”; livro excepcional que mostra o servilismo de nossa mídia e sua falta de comprometimento ético com a divulgação e apuração dos fatos.

Nesta obra, Dorneles analisa notícias e artigos veiculados nos principais meios de comunicação do Brasil (Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, Veja, Jornal do Brasil, Istoé, Época, Jornal da Tarde) e do exterior (The Times, Washington Post, CNN. BBC, The Independent, Los Angeles Times, New York Times, Al Jazira) após os atentados de 11 de setembro, e mostra as contradições, superficialidades, preconceitos e falta de profissionalismo da grande maioria dos jornalistas nas coberturas da guerra contra o Afeganistão, contra o Iraque e contra o terrorismo. Princípios primários do jornalismo, como a checagem das informações e a pluralidade das fontes, não foram respeitados. Carlos Dorneles mostra, através de exemplos reais, citações de manchetes e depoimentos devidamente referenciados, toda a “ginástica semântica” a que se viam forçados os jornalistas que cobriam os conflitos no Oriente Médio e que se posicionavam politicamente favoráveis à versão estadunidense dos fatos. É o caso, por exemplo, da aplicação do conceito de “terrorismo” aos conflitos árabe-israelenses: “Uma bomba explodiu na porta de um colégio palestino em Jerusalém Oriental. Sete crianças e um professor ficaram feridos. O atentado foi assumido por um grupo judeu que se autodenominou ‘Vingadores de Crianças’. Em nenhum jornal brasileiro o ato foi chamado de atentado terrorista. No Jornal do Brasil o título era ‘Israelenses radicais atacam crianças’. Em O Globo, ‘Justiceiros judeus atacam escolas’, assumindo a alegação dos autores do crime. Nos textos, o atentado foi classificado como ‘ato vingativo’. O terror ficou de fora. Em setembro de 2002 outra bomba foi colocada numa escola palestina e feriu sete crianças. Em todos os jornais os autores anônimos foram chamados de ‘extremistas’. (p. 263).

Quando os atentados são assumidos por grupos palestinos, então a mídia os classifica como “atos terroristas”, e seus protagonistas não têm nome, não têm história. São simplesmente “terroristas”, bárbaros sem motivação senão a própria barbárie, esvaziados que são das motivações políticas, econômicas e sociais dos seus atos extremos.

Nestes tempos em que tanto defendemos a liberdade de imprensa, “Deus é Inocente. A Imprensa Não” permite-nos olhar para a mídia de forma crítica e desconstruir seu discurso, percebendo que por trás de cada palavra, de cada imagem, existe uma imensa rede de poderes que direciona, seleciona, omite e deturpa as informações que nos são vendidas como objetivas e verdadeiras.

 Por isso o alerta de Saramago, por isso o alerta de Dorneles: Deus até pode ser inocente, mas a imprensa certamente não é. Eu, escriba titular desta coluna, não sou e nunca serei ateu, creio que Deus é inocente e fundamental para nossas vidas. Desejamos e gostaríamos que a imprensa fosse fiel, nunca deturpasse, omitisse, direcionasse ou escamoteasse os fatos! Ó Senhor tenha piedade de nós!


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