Ruy Medeiros: Os 100 anos de Herberto Sales

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Ruy Medeiros | Advogado, professor e escritor | ruy-medeiros@uol.com.br

Herberto Azevedo Sales, se estivesse entre nós, completaria 100 anos de idade. Esse grande escritor da Latinoamérica nasceu em 21 de setembro de 1917, em Andarai, na Chapada Diamantina, Bahia. É filho de Heráclito de Sousa Sales Anna de Azevedo Sales. Casou-se com Maria Juraci Xavier Chamusca Sales com a qual deixou os filhos Heloisa, Heitor, Herberto. Estudou no Colégio Antonio Vieira, em Salvador, e retornou a Andarai, terra presente em mais de um de seus romances. Labutou em diversas atividades enquanto sua alma gestava o escritor multitemático que seria: em lides voltadas ao garimpo, transacionando com madeira, criando gado, e em esporádicas atividades comerciais. Não sei (nem isso importa muito) como conseguiu, em 1939 o cargo de Oficial do Registro de Imóveis em sua terra. Passou, nesse mesmo ano, a editar seus escritos (crônicas), nas páginas das revistas Vamos Ler e Carioca. Mudou-se de sua terra para o Rio de Janeiro, onde por vários anos trabalhou para a empresa editora de O Cruzeiro, do grupo de Diários Associados (Assis Chateaubriad). Leia a íntegra.

Em 1971 foi eleito membro da Academia Brasileira de letras e em 1975 assumiu a direção do Instituto Nacional do Livro, que comandou por 11 anos. O escritor também foi assessor da Presidência da Republica por 1 ano, no Governo José Sarney, e ocupou cargo de Adido Cultural da Embaixada do Brasil na França durante 4 anos.
Em 1944, Herberto Sales publicou Cascalho, livro que eu leria aos meus 17 anos, em 3ª edição (de 1956), já reescrito, adquirido no sebo de Edgar Loureiro, saudoso Loureiro, que a preço módico apresentou-me outros autores, inclusive Dickens, que me provocou a felicidade (não clandestina) da leitura. Reli o livro por 3 vezes, a última vez das quais na boa edição da Editora da Assembleia Legislativa da Bahia.
Cascalho impressionou-me. Um realismo diferente de outros que eu até então lera. Naquele tempo (falo da década de 1960) nós, jovens estudantes do ensino médio e universitário, geralmente líamos. Dentre muitos, está ai Ruy Espinheira Filho, que não me deixa mentir. Ele próprio leitor entre voraz e meditativo, excelente na crônica e na poesia, desde cedo.
Cascalho impressiona pela linguagem (inclusive o uso espontâneo de regionalismos), pelo ritmo, pelo tema e pelo enredo.
O romance começa e finda com situação semelhante: chuva e morte. Dois marcadores do tempo – um, de caráter, físico (chuva) e outro de caráter social (existência exaurida). Marcadores contraditórios. A chuva, que no sertão promete alegria, traz a morte. O homem, que gera riqueza tem seu fim não lamentado. Morreu apenas um homem, comenta um cabo de garimpeiros sobre uma das mortes na gruna. Mas a contradição entre tempos físicos e social, seus desencontros, aparece sempre de forma diferente no correr do enredo. Os dias que se passam, entre miseráveis e ricos, fisicamente, e a oportunidade da sorte (bamburrio) no garimpo, que, quando realizada, é um evento na vida social local, uma data. Fim e inicio do livro (não bastasse o transcorrer de toda a trama) bem demonstram a desumanização da sociedade sertaneja: Exploração, morte, perseguições – a face terrível do coronelismo do diamante.
Cascalho está traduzido para tcheco, italiano, polonês, espanhol, japonês, francês, coreano, chinês e romeno.
Não quero alongar-me, mas é imperioso mencionar que outras obras de Herberto Sales que têm valor literário tão grande como cascalho. Além dos Marimbus (de 1945) trata de marchas, expectativas, negociações em torno da compra de uma fazenda e sua potencialidade de produção de madeira; Dados Biográficos do Finado Marcelino (de 1965, três vezes reescrito pelo o autor, com edição também em Portugal, possui uma das personagens mais bem caracterizadas dentre os romances que li, Marcelino burguês de gosto refinado); O Fruto de Vosso Ventre (traduzido para o japonês, inglês, espanhol e sueco), é outra obra prima, que mereceu de Tristão de Athaíde (o bom Alceu de Amoroso Lima), crítica elogiosa, na qual demonstra que é romance pioneiro, na literatura brasileira, quando trata da presença da sociedade do futuro, baseada no tecnocracia; Os Pareceres do Tempo (com tradução francesa), depois de Cascalho é o livro que mais aprecio do autor; A porta de chifre, é o grande romance ecológico de nossa literatura, certa ficção cientifica; Na Relva de tua lembrança (igualmente publicado em Portugal); Rio dos Morcegos, muito bom, ambientado em sua terra natal; Rebanho do ódio; A Prostituta (neste livro, o autor retoma a linha da vida de uma personagem de “Os Corumbas”, de Amando Fontes). O autor diz sobre seu livro (A Prostituta) – “Enfim o romance A Prostituta conta uma história velha como o mundo, que nas diferentes circunstâncias que a cercam e em sua trama humana a repetem, incessantemente se atualiza. De modo absoluto é a história do bem e do mal, relativamente aos passos do homem e da mulher no mundo e na sociedade humana”. É o último romance do autor, igualmente contista consagrado de Histórias Ordinárias, O Lobisomem e outros contos Folclóricos, Uma Telha de Menos, com traduções inglesa e japonesa), escritor para crianças ( O Sobradinho dos Pardais, com tradução japonesa, que recebeu diploma do mérito da Internacional Board on Books for Young People e outros). Deixou recortes de memórias em Subsidiário – Confissões, Memórias e Histórias (de 1988), e outros escritos.
O grande autor, quando de seu último romance disse: Não consigo escrever hoje / talvez seja por causa de ontem / ou de anteontem / quem sabe se não é por causa de amanhã.
Herberto Sales faleceu em 13 de agosto de 1999.


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