Vitória da Conquista: História e Mito no Sertão da Ressaca

Foto: BLOG DO ANDERSON

Eduardo Moraes

Neste 09 de Novembro, comemoramos os 180 anos de emancipação política de Vitória da Conquista. Nosso bicentenário aproxima-se e será celebrado de forma apoteótica, numa Conquista do futuro que começa agora, planejando tudo já a partir do próximo ano. Historiadores, pesquisadores, memorialistas e estudantes devem ser provocados a fazer uma revisita historiográfica e antropológica, para esclarecer e trazer à luz várias passagens que ainda permanecem obscuras em nossa história, já que muito do narrado ou escrito até aqui, em função da escassa documentação ou interpretação apressadas, reforçam meias verdades ou mitos captados da oralidade dos nossos ancestrais. Os recortes construídos para contextualizar o surgimento do nosso Município se repetem como tradição contada no surgimento de dezenas de outras tantas cidades do Brasil. Leia a íntegra.

 

Um herói que recebe autorização  da coroa portuguesa, comandando milicianos que adentravam o inóspito sertão em busca de jazidas de ouro, pedras preciosas, riquezas naturais, captura ou dizimação dos povos originários e que faziam promessas aos seus santos ou santas de fé, que ao lograr êxito em suas empreitadas construiriam uma capela. Essa história se repete em outras conquistas de novas terras em todo o Brasil, parece ser um modelo adotado pelos memorialistas ou autobiografias dos que lideravam essas milícias. É preciso abandonar a velha ideia de que, antes da chegada dos portugueses, o sertão da resseca não passava de uma vasta extensão de mato povoada por um punhado de índios.

Comemorar o bicentenário trata-se de uma grande oportunidade de incentivar e promover iniciativas para um maior aprofundamento de pesquisas a partir de editais por parte do governo municipal ou universidades, voltados para o financiamento de projetos de pesquisa que propiciem estudos mais amiúdes sobre a nossa história, permitindo, assim, trazer à luz os verdadeiros acontecimentos que contribuíram para a formação da nossa identidade. O que somos é exatamente o resultado de tudo que aconteceu nessas terras no passado. É sabido, por exemplo, que muito antes de João Gonçalves da Costa chegar por essas terras, outros aventureiros transitavam pelo sertão, que já existiam povoamentos e criação de gado que pastavam livremente em toda essa região, incluindo   Brumado, Condeúba e alhures. Além disso, já existia, mesmo que de forma precária, ligação entre essa região, Rio de Contas e o litoral de Ilhéus. O próprio mestre de campo João da Silva Guimarães, vindo das Minas Gerais a caminho do sertão, trava duros combates, sofre revés no confronto contra os grupos indígenas habitantes do território, como o seu interesse era uma montanha de gemas de pedra preciosas e não apenas terras, segue o percurso Rio Pardo em direção ao litoral. O desbravador João Gonçalves da Costa, acompanhado de cerca de 60 homens brancos, mestiços e pretos, marcha rumo ao sertão da ressaca   com a missão de abrir estradas, povoar as terras, capturar, domesticar ou dizimar os índios que por aqui circulavam e atormentavam os proprietários existentes. As autoridades da época, por repetidas vezes recebiam pedidos de socorro desses civilizados que se queixavam estarem sendo atacados em suas propriedades por índios selvagens. Mais tarde, o próprio João Gonçalves, da mesma forma, reclamará ao governador que vinha sendo vítima desses ataques quando já se encontrava em suas terras na fazenda Cachoeira, no que é hoje o município de Manuel Vitorino.

Sabemos que o território onde hoje está localizado o município de Vitória da Conquista foi habitado pelos povos indígenas Mongoyó, Ymboré e Pataxó. Que os aldeamentos se espalhavam por uma extensa faixa, conhecida como Sertão da Ressaca, que vai das margens do Rio Pardo até o Rio das Contas. No entanto, outras questões merecem melhor esclarecimento como: a   controversa afirmação de que o conquistador seria preto alforriado, estudos dão conta   que os negros africanos escravizados na época, limitavam-se apenas ao litoral de Portugal, não havendo registros dessa relação de escravidão servil na região de origem do bandeirante nascido na cidade de Chaves, em Trás-os-Montes.  Aqui no território foram travados vários confrontos sangrentos entre os índios e os bandeirantes comandados por João Gonçalves, inclusive sob o seu comando lutavam índios domesticados. O embate no lugar denominado Batalha foi mais um entre tantos que aconteceram em todo o território. Esse confronto ganha destaque por narrativa atribuída ao próprio desbravador. Dizimação de pestes entre os índios a partir de roupas dos invasores mortos por varíola ou doenças contagiosas, banquete dos mortos, práticas atribuídas aos colonizadores da américa espanhola, verdade ou lenda?  Sobre a suposta promessa de que ao derrotar os povos originários construiria uma igreja, merece melhor investigação, trata-se de narrativa comum na origem de outros municípios Brasil afora. Em que ano de fato nasceu e morreu o predador e sanguinário João Gonçalves da Costa? Alguns cravam como data do seu nascimento o ano de 1720, 1730 ou 1731? Sua morte aos cem anos, não era comum, mas teria mesmo alcançados todos esses anos de vida? Sabe-se que a bandeira incialmente comandada por João Gonçalves da Costa se dissipa com a deserção de muitos dos milicianos que se rebelaram subdividindo-se, alguns homens fixando moradia no território do que viria a ser Vitória da Conquista, esse pode ser o estudo mais importante já que são desses que vão surgir as famílias ancestrais.  Outros continuaram em suas incursões solo em busca de conquistarem as suas próprias terras, o João Gonçalves da Costa era um aventureiro, não tinha um projeto de cidade ou poder e nada aqui construiu ou deixou como legado. Ao contrário, construiu o mito   de bravura conquistando fama pela sua coragem e valentia em combater sem cessar os indígenas no território, essa bravura oportunizou ser recebido pelo governador da Bahia da época do qual recebeu a missão de continuar desbravando as terras do sertão adentro, aldeando e abrindo estradas, para o recôncavo baiano, para isso recebeu viveres, munição e armamentos, chegando, assim, até Manoel Vitorino. Nessa mesma época (1781), teria sido nomeado com o título de Capitão mor da Conquista do Sertão da Ressaca   e fixando moradia em Manoel Vitorino, de acordo com relato do Príncipe Maximiliano em sua passagem por aquela região. Segundo alguns historiadores, os filhos do capitão seguem a mesma vocação do pai, desbravando e conquistando novos territórios a partir de Manoel Vitorino em direção ao oeste do sertão da ressaca como: Maracás, Tanhaçu, Ituaçu, Contendas do Sincorá… Sabe-se que muitos dos homens que acompanhavam o desbravador, tiveram filhos com as mulheres índias e pretas o que deu origem às muitas famílias nesses territórios.

O embate da Batalha, como muitos afirmam, não selou o fim da população indígena, já que esse confronto não envolveu toda a população indígena que se espalhava pelas terras de leste a oeste, sul e norte do território. Hoje, ainda há resquícios do que foram quilombos, aldeamentos onde índios, pretos e milicianos desertores e outros aventureiros já residentes nessas terras, deram continuidade às suas vidas, caçando, pescando, plantando colhendo e procriando. Trago como exemplo uma grande comunidade no lugar chamado de Pau Brasil, uma área habitada por remanescentes de índios e pretos, a qual foi motivo de grande disputa judicial no século passado entre esses povos tradicionais, posseiros e grileiros. Ainda criança conheci já bem idosa a minha tia avó (Tetê) de baixa estatura moradora dessa área do Pau Brasil (entre Barra do Choça e Caatiba) com modos de vida dos seus ancestrais. Lembro da sua pele escura, cabelos pretos, sempre presos por uma tiara, para se alimentar nunca usava talheres, se recusava a se sentar em uma cadeira, preferia ficar de cócoras pitando o seu cachimbo, a sua conversa era monossilábica, entre cortada de muitas palavras para mim, desconhecidas. Portanto, o combate ocorrido na guerra travada na Batalha, ao contrário de como muitos narram, não foi o fim. Muitos sobreviveram e se misturaram, dando continuidade à formação do nosso povo e estamos presentes em cada canto desse município.

A nossa história, portanto, deveria ser narrada na perspectiva dos que aqui já se encontravam antes da chegada das bandeiras e dos que resistiram, ou dos que chegaram com as bandeiras e resolveram seguir o rumo das suas próprias vidas se fixando nessas terras, gerando as famílias que povoaram o nosso município, criando gado, plantando, comercializando, construindo, abrindo estradas, atraindo imigrantes, negócios e desenvolvendo o nosso município. A nossa história e identidade pode ter como foco o povo que não permitiu ser desalojado das suas terras e não a figura mitológica do miliciano predador, matador de nativos, João Goncalves da Costa; esse foi rejeitado e derrotado pelos povos originários e aliados. Tanto é assim que aqui não fixou morada nem tão pouco legado. Não proponho rasgar, mas resgatar e valorizar a história dos personagens que são os principais atores responsáveis pela formação da nossa identidade altiva, hospitaleira, empreendedora, cosmopolita, solidaria, inovadora, inventiva e   emancipada politicamente. Vitória da Conquista é, portanto, resultado do esforço do seu povo e não da bravura do sertanista do mito do Capitão mor do sertão da ressaca Joao Gonçalves da Costa.

Antônio Eduardo Santos Moraes

Historiador, Contador e Pós em Gestão Pública

Sobre o autor: Tem como ascendência paterna os bandeirantes vindos de São Paulo chegando ao território baiano pela região de Palmas de Monte Alto, se estendendo pelas cidades de Guanambi, Caculé, Caetité, são as famílias Marçal, Santana e Carvalho, chega a Vitória da Conquista no final do século XIX. O avô paterno originário da família Morais, chegou a Conquista, vindo do Vale do Jiquiriça saindo do povoado de Areias atual Ubaíra, com as primeiras caravanas de protestantes que fundaram a primeira igreja batista. Seus tios avós já labutavam na região cacaueira. Do lado materno o avô originário da família Rocha veio do território de Brumado para trabalhar como agregado em fazendas na região de São Bernardo aqui em Conquista. A avó materna remanescente de pretos e indígenas da região do Pau Brasil, trazia como sobrenome… de Jesus.

Bibliografia:

  1. Amaral Rocha – Altemar – O PAPEL DE JOÃO GONÇALVES DA COSTA NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO BAIANO – SÉCULOS XVIII E XIX: AS ORIGENS DO TERRITÓRIO DE VITÓRIA DA CONQUISTA – Altemar Amaral Rocha https://orcid.org/0000-0002-6278-052X – UESB, Brasil
  2. Souza – Maria Aparecida Silva – A Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia

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