A visita

Alberto Marlon

Após alguns dias fora, retornei ao lar. Pedi perdão à minha cama pela ausência com um esparrachar sonolento e rapidamente me despedi do mundo dos sentidos. Talvez seja o cansaço, ou talvez a cama esteja muito além das que estive nos últimos dias, mas tive a impressão que mal deitei e fui despertado pelos primeiros passos que vinham da rua: atletas, idosos, jovens, toda uma geração que aprecia as caminhadas matinais. Do alto de minha janela, na Avenida Olívia Flores, recebi as primeiras brisas do dia. Os caminhantes aumentavam em proporção que a manhã avançava. Conquista é uma cidade de caminhos, cresceu justamente por essa característica, entroncamentos, passagens e rodovias.

 Mais tarde, após ir à padaria, fiz as pazes com minha velha cafeteira. Como pedido de desculpas, a observei, roncando, soltando vapor pela tampa e exalando um cheiro de café fresco. Abri janelas e portas, como quem precisava renovar algo além do ar…
Nos últimos seis meses tenho habitado essa mescla de apartamento e cortiço – em Salvador a estranheza não seria a mesma, pois lá, em meios a morros e ladeiras, é muito comum tais habitações: um amontoado de pequenos apartamentos que desafiam a estética e leis da boa Engenharia. Em Vitória da Conquista, uma cidade, digamos, com ares aristocráticos – coronelistas, segundo outros – tudo isso parece algo alienígena. Só pra enfatizar: a dona, ranzinza e sempre preocupada com os vencimentos do aluguel, fez pintar na parede da garagem – que nos é também entrada – uma réplica do Farol de Itapoan.

A manhã avançava. Como de costume, liguei o notebook na sala – o único cômodo que tenho, senão a cozinha, quarto e banheiro – e conectei a uma dessas rádios da Internet. Deixei a porta aberta.

De repente, sinti uma sombra atrás de mim: minha vizinha, cuja porta é defronte à minha. O estranho é que vivo aqui há seis meses e praticamente não conheço as pessoas que dividem paredes, entrada e garagem comigo.

Após uma permissão que lhe fiz com o olhar, lá estava ela, timidamente pisando sobre o tapete que dá algum ar solene à minha humilde sala. Era uma menina, uns dezessete anos, branca, estatura mediana, cabelos pretos e dona de um hipnotizante par de olhos azuis. Pouco a tinha visto, apenas sabia que morava aqui a estudos. Estava no fim do ensino médio, era de outra cidade e os pais custeavam sua morada. Dividia o imóvel e demais despesas com mais três colegas.

Disse que tinha estranhado a minha ausência. Menti-lhe: estava viajando, pras bandas do Mato Grosso, a trabalho, na cobertura de um conflito com uns sem-terra. Menti em parte, pois realmente viajei, a lugares de onde se pode observar o ser humano, através de uma ótica singular, mas isso seria outra estória…. prefiro omitir.

– Mas vocês jornalistas viajam muito, deve ser bom, estar em vários lugares. Disse a moça.

– É… depende. Tem alguns que vão cobrir guerras ou catástrofes, outros até morrem no exercício da profissão.

– Credo! Mas deve ser bom estar na Globo. Começando pela TV Sudoeste, aí, vai subindo e um dia chega lá, no Jornal Nacional.

– Algumas histórias, no meio de milhares. Respondi, tendo o cuidado para não caçoar da moça. Mas, continuei, geralmente jornalistas são mal pagos, trabalham muito e, quando morrem, duros e sem uma boa aposentadoria, só entram nos livros de estatísticas.

Alguns, por ingressarem na área acadêmica, fazem alguma história. Jornalismo está mais para sacerdócio, sabe? Tipo padre, a diferença é que estes se arvoram do direito divino, enquanto aqueles servem aos interesses econômicos, ou ideológicos. Então, se você quiser ganhar dinheiro, escolha outra carreira. Se optar pelo serviço público – onde estão as melhores carreiras e salários – faça Direito ou Administração. A área de saúde é muito promissora, também. Medicina, Enfermagem, ou outra coisa ligada às misérias do corpo, dão um bom dinheiro. Pra completar, continuei, um ministro do Supremo equiparou a profissão de jornalista à de cozinheiro – reconheço a importância destes – e retirou a lei que obrigava o diploma para o exercício da profissão.

A moça parecia não me ouvir. Percorria, com uns finos dedos, alguns livros que mantenho em minha sala.

– Já leu todos?

– Quase todos, alguns só servem pra consulta.

– Ah, já li 11, o que mais gostei foi Iracema, conhece?

– Hum, já li. Quase faço um discurso contra o Romantismo e tento converter o gosto
literário da moça para coisas mais reais. Desisti. Preferi deixá-la à mercê de suas próprias descobertas.

– Me disseram que você é muito inteligente, deve ser. Com esse tanto de livros.

– Inteligência, respondi, pode ter várias caras. Existem os que têm habilidade para ganhar dinheiro, também é uma forma de inteligência, já outros, por se acharem muito inteligentes, acabam por se afastar do convívio comum.

– Como assim? Ser inteligente não é bom?

– É bom, claro que bom. Respondi, laconicamente.

Acredito que a moça percebeu minha pouca disposição para explicar-lhe certas coisas da vida e, com um tímido “nos vemos depois” foi encontrar-se com a pia de roupa, que a esperava. Ainda vi seus olhos azuis quando passou pela minha janela.

Voltei à tela do computador, levantei um pouco o olhar, em direção aos livros na estante e, por alguns momentos, desejei nunca tê-los lido.

Alberto Marlon
Fonte: www.cronicasconquistenses.blogspot.com
Foto : Google


Uma Resposta para “A visita”

  1. edivaldo ferreira

    Meu caro Alberto Marlon: que bom que tenha voltado dessa viagem. Acredito que a experiência vividanestes dias realmente tenhaajudado você refletir bastante e até imagino que você tenha assistido o filme,cujo enredo é sua própria vida. Sua história. Sempre o ví como uma pessoa inteligente, culto e com um futuro promissor, notadamente, com a profissão que abraçara. Mas quero, sobretudo, dizer a você que os obstáculos que se nos apresentam no cotidiano, são os desafios que temos que enfrentá-los e vencê-los. Você é um vencedor !

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