Academia do Papo

 A morte e o desaparecimento do gato Simba 

Por Paulo Pires 

Em uma daquelas casas compridas da Rua dos Fonsecas, final de uma dessas tardes calorentas de outono, pude acompanhar de perto, com a discrição que a ocasião exigia, uma reunião extraordinária realizada por um grupo de pardais. O objetivo daquela reunião, segundo o único ponto da pauta, seria estabelecer um plano ou planejamento estratégico para “acabar de vez” com o gato Simba. O grupo constituía-se de uns vinte membros. Minha presença àquele conclave foi obra do acaso, mera coincidência. Encostei o carro embaixo da mangueira da casa e, sem querer, comecei a ouvir pipilos estranhos, chilreios renitentes e uma algazarra prá lá de cabeluda.  O som que vinha dos passarinhos reunidos embaixo do pé de acerola não era o mesmo dos dias normais. Curioso com o barulho anormal me aproximei na ponta dos pés e pude ver o que estava acontecendo.  Lá estava aquela renca [ou seria penca?] de pardais reunidos em uma congregação frenética.

Senti-me como se fosse Sérgio Vieira de Mello, brasileiro, que se tornou membro do Alto Comissariado das Nações Unidas, infelizmente morto num atentado em Bagdá em 2003. Como disse, lá estava eu, na ponta dos pés, observando as discussões dos pardais. Eles pipilavam, berravam, rosnavam, discordavam, concordavam. Era um azougue a reunião. E eu, em pé, calado, imóvel, apreciava silenciosamente a tudo. No meio do burburinho, um dos mais velhos [pelo menos me pareceu pela dureza do bico e tamanho do papo] deu um pio mais alto e todos se calaram. Seguro de que todos o ouviriam disse o papudo: “Temos que ser mais serenos em nossa discussão. Do jeito que estamos nos comportando a coisa está ficando muito passional e pouco racional. O que nos interessa é pegar o gato Simba. Esse é o ponto central, o resto é retórica”. Todos concordaram com a fala (digo pipilo) do mais robusto.

Na realidade, o que estava ocorrendo na reunião, era uma manifestação de repúdio, desagravo e revanche contra o gato da casa, um bichano sonolento de pêlo dourado, que atendia pelo nome Simba. Este gato numa atitude injustificável e muito desumana (?) ultimamente, sem quê nem prá quê, incorporou um instinto ruim e começou a matar os filhotinhos dos pardais com o intuito exclusivo de arrasar moralmente a pardalada. È oportuno dizer que ele não precisava em hipótese alguma matar os pequenos. Por que não precisava?  Porque o dono do gato, o senhor Fábio, generoso e humano (muito mais do que o gato) comprava-lhe semanalmente as melhores refeições para que o sem vergonha não passasse privação alimentar. Mas o bichano depois de se fartar de alimento e beber uma água limpinha que o dono religiosamente lhe trazia, sem ter mais nada o que fazer no expediente da tarde simplesmente adotou como “diversão” o perverso exercício de eliminar os pequenos pardaizinhos.

Aquela reunião, portanto, visava estrategicamente a eliminação do gato Simba. Sim, o gato deveria ser eliminado, caso contrário as futuras gerações de pardais daquele trecho estariam comprometidas, mortal ou psicologicamente.

Ouvi o pardal maior dizendo aos mais novos que todos, a partir daquela tarde teriam como tarefa burocrática vigiar todos os movimentos, vícios, manias, sonecas e o escambau até que se definisse o ataque final.  Passados alguns dias, outra reunião foi realizada, e por outra coincidência lá estava eu, presente, em pé, assistindo a tudo. Um pardal novo, fogoso, disse que observara que nos últimos dias, o gato Simba, por não  ter alegria com a companheira (castrada) Franni tinha o hábito de em todo final de tarde ir para a Rua Presidente Médici em busca de gatas que gostassem do balacobaco. Entre esta rua, a casa de Zerenildo e a de Malaca, havia uma gataiada da zorra. Simba chegava lá, com jeitão de gato bem nutrido, botava a maior banca entre as gatas e ali passava a noite, só voltando depois de o sol raiar.

O pardal mais velho ao ouvir a descrição dessa rotina, exclamou: “É aí onde a gente pega esse safado”. Os demais membros perguntaram curiosos: Como? A resposta veio na hora: Quando o gato Simba estiver voltando para a Rua dos Fonsecas, a gente dá um sobrevôo sobre a cabeça dele e em coro a gente anuncia que nasceu mais um pardalzinho. Ele vai nos ouvir, ficar curioso e olhar prá cima. Neste exato momento, a gente aciona aquele nosso amigo que entrega gás, ele desce correndo e passa o Pampa azul sobre o safado. “É caixão e vela preta”.

Nâo deu outra. Numa manhã de sábado, Simba voltava de sua noite de orgia, meio sonolento, quando de repente sentiu um revoar de pássaros sobre a cabeça. Olhou prá cima, meio distraído e ouviu os pardais dizendo: O menino nasceu! O menino nasceu!  Simba esqueceu que estava no meio da rua, quando de repente só viu o vulto de um Pampa azul se aproximando, e pneus carecas lhe passando bem no meio da barriga. Os pardais deram meia volta e viram o animal estendido no meio da rua, sangue prá tudo que é lado. Deram outro sobrevôo e constataram que realmente o bichano acabara de dar os últimos  suspiros. Foi uma festa no reduto dos pardais. O pessoal da limpeza, rapidamente chegou e passou o rodo. Na casa de Fábio houve grande preocupação, mas ninguém sabia de nada. Para os da casa, simplesmente Simba havia sumido. Dias depois, muitos dias depois, o vizinho Bebeto anunciou o que acontecera. Não houve nem tempo para uma missa de sétimo dia. Simba morreu, o gato Simba morreu, desapareceu. E assim termina a estória: Era uma vez um gato que matava pequenos pardais. Agora que morreu, pardal não mata mais.


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