As baianas e seus muitos ofícios

Foto: Divulgação
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Vilson Caetano | Antropólogo | [email protected]

Chamo aqui de  “baianas”  mulheres que ainda hoje sobrevivem da venda de comidas nas ruas da cidade de Salvador e, aqui, temos  obrigatoriamente que incorporar também os baianos, homens que têm contribuído não apenas para a divulgação, mas conservação e recriação de pratos afro-brasileiros. Diga-se de passagem que a cozinha baiana, entendida como a cozinha de azeite da cidade de Salvador, se formou a partir da junção de  tradições islâmicas, judaicas, portuguesas, galegas, indígenas, africanas e muitas outras. Leia na íntegra a opinião de Vilson Caetano.

Na colônia, o comércio de gêneros alimentícios no varejo era concedido exclusivamente às mulheres brancas; aos poucos, as mulheres negras, vestidas à maneira africana, com turbantes, camisas de algodão, saia estampada, pano da costa e algumas até com  joias foram ocupando este lugar.

Minucioso

Um estudo minucioso sobre o cotidiano destas mulheres foi realizado pela professora Cecília Conceição Moreira Soares e publicado sob a forma de livro intitulado Mulher Negra na Bahia no Século XIX. Ganhadeiras e quitandeiras vendiam todos os gêneros alimentícios. Saiam cedo apregoando seus produtos levados na cabeça dentro de gamelas, cestos ou tabuleiros.

Quando na cidade foram estabelecidos pontos para o comércio de alimentos específicos como carnes, peixes e frutas, lá estavam estas mulheres ditando regras nas suas quitandas, “estruturas de madeiras permanentes”.

Com o passar do tempo, o ganho, espécie de acordo entre senhores e escravos foi se tornando uma maneira através da qual se podia acumular recursos para a compra da alforria – verdade que a duras custas.

Outro trabalho sobre o assunto que merece destaque é o de Richard Graham, intitulado Alimentar a Cidade.  O autor lembra que a venda na rua exigia disposição para se deslocar,  habilidade e iniciativa. Em resumo: “Ter cabeça de venda”.

Comercializar alimentos permitia mais do que relações econômicas, pois a comida serve para ampliar e estabelecer vários vínculos. Ideia semelhante vamos encontrar no texto de Pierre Verger e Bastide sobre os mercados nagôs no Golfo de Benin. Esta arte de mercar teria sido transmitida pelos africanos e africanas a seus descendentes. Isso resulta,  como sugere o Professor Vivaldo da Costa Lima, no fato de que,  ainda hoje, encontramos  os mesmos tabuleiros de 200 anos, talvez com poucas modificações, a fim de adequar-se a algumas medidas normativas.

E sobre as comidas? Muitas se mantiveram, a exemplo do acarajé, do abará, da cocada, dos mingaus, da passarinha, do mocotó nas primeiras horas da manhã, do peixe frito,  do churrasquinho, da pamonha, do cuscuz, dos bolos, do lelê, do beiju, etc.

Outras desapareceram e algumas  tornaram-se molhos, espécie de complemento, ou acompanhamento, como o brasileiríssimo vatapá, o caruru e a pimenta frita no azeite de dendê.

Bolinho

O acarajé,  iguaria africana mais popular nas ruas do Brasil, por exemplo, teve seu tamanho aumentado e uma das explicações  seria para concorrer com outras comidas que passaram a circular na rua, a exemplo do cachorro quente e hambúrguer.

Se, nos últimos anos, o tamanho do bolinho feito de feijão  precisou diminuir para  circular entre canapés nas mesas grã-finas, recentemente teve seu tamanho mais uma vez modificado   para enfrentar a crise econômica e retornar a 0,99 centavos.

É bem certo que os acarajés de R$ 1  que vêm se multiplicando pela cidade, mais do que enfrentar a recessão, demonstra a capacidade que a comida possui de sobrepor-se a fronteiras econômicas, sociais, culturais, políticas e até mesmo religiosas.

O acarajé de R$ 1  tem deixado para trás o  “bolinho de Jesus”, “o acarajé das irmãs”, “o acarajé gospel”, o “acarajéburguer”, o “mac acarajé” , o  acarajé de 1 Kg  e tantos outros. Embora a concorrência venha reagindo, o seu preparo tem se baseado nas mesmas técnicas  e nos mesmos ofícios que neste ano completam 10 anos de registro como patrimônio do Brasil.

Nas mesmas histórias e motivações que alcançaram as ruas quando estes homens e mulheres negras saíram para mercar seus produtos e fizeram da venda de comida um dos principais motivos de sua existência.


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