Jeremias Macário: Carta do Brasil aos poderes

Foto: BLOG DO ANDERSON
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Jeremias Macário | Jornalista | [email protected]

Tem gente na minha terra fazendo cartas de amor, sentimentais, de lamúrias, de cobranças de cargos, do toma lá e dá cá e do tipo mais recente do morde e assopra. A minha é de desabafo aos poderes que há 516 anos, desde que aqui aportou a nau Cabral nas minhas costas, só têm me maltratado, me traído e me deixado cada vez mais acabrunhado. Vivo acossado por tantos impropérios contra meu solo, usado para plantar espinhos. Leia na íntegra.

  Dizem que sou um gigante pela própria natureza, deitado eternamente em berço esplêndido. Não tão mais esplêndido porque minha terra foi devassada por ervas daninhas que destroem as plantações. Mata-me cada vez mais a sequidão de ideias. Procuro uma cabeça pensante e sensata que pense em mim, mas cada um só pensa em si e prefere viver na contramão para cevar o seu poder.

  É, moço aí que aprecia minha paisagem, já me chamaram de Vera Cruz, Pau Brasil, Eldorado das minas gerais, de terra da cana-de-açúcar, do café, da borracha e do ouro negro extraído do meu chão! Vieram malfeitores assassinos e tudo roubaram de mim em nome dos meus filhos que tanto necessitavam para viver dignamente.

   Hoje me chamam de outros nomes pejorativos e lá fora me conhecem como a terra dos índios e das feras perigosas. De bela e rica, minha imagem passou a ser a pior possível. Por lá me apelidaram de terra de caloteiros. Não sei se choro ou rezo quando dizem que Deus é brasileiro!

  No meu torrão os genocidas se tornaram heróis. Os réus fazem parte de uma condenação. O farsante retorna aos braços de seus inimigos de ontem. Acham normais grosserias de um senhor chulo que se comporta como monarca. Aqui se usa o dinheiro público e o poder de coação para engrossar manifestações em favor de si. Trancam e soltam pautas de julgamento de acordo com a conveniência de cada um. Todos se juntam para esfaquear a verdade pelas costas.

b  Sempre fui dominado por vilões, regentes e imperadores que na minha terra fizeram escravidão amaldiçoada trazida em navios negreiros vindos da África. Aqui, senhores das grandes casas, derramaram muito sangue escrava nos pelourinhos, nos porões e nas senzalas. Tudo por pura ambição. Minha terra é testemunha de tudo quanto aconteceu.

  De monarquia, uma cavalaria de marechais me transformou em república que até hoje foi coisa só deles e pra eles mamarem em minhas tetas. Nos levantes, revoltas, revoluções e nas mudanças de poderes, sempre saiu mais forte a oligarquia rural, industrial e financeira contra os oprimidos. Pessoas tiveram boas intenções e até se prepararam para as reformas, mas os corvos derrubaram minha gente.

  Veio, então, mais um tempo das trevas que cobriram minha terra com o manto preto da ditadura dos generais que nela derramaram o sangue dos presos e torturados. Por mais de vinte anos fui leiloado e vendido para o capital estrangeiro. Amordaçado em grilhões, me negaram a liberdade e me levaram ao atraso cultural. Meu conhecimento foi mutilado e minha mão-de-obra foi sugada gota por gota do seu suor. Bando de canalhas viciados!

  Depois de muitos anos sendo repartido pelos gananciosos burgueses, me prometeram a palma da divisão social para os mais pobres e descamisados. Ressurgiu a esperança de um socialismo honesto e sério com palavras de ordem, mas a roubalheira do meu patrimônio transformou tudo em medo e horror. Fizeram escalpo da minha pele e entregaram minhas vísceras para os abutres carniceiros que sempre farejaram minha casa.

   Os poderes encheram as burras de ouro e montaram suas mordomias vitalícias com seus tentáculos gigantes, cooptando seus dragões que cospem fogo pelas ventas para manter seus privilégios e cargos. Dividiram-me em “coxinhas” e “mortadelas” que estão estragadas com prazo de validade vencida.

   Tanto as “coxinhas” como as “mortadelas” podem ser incineradas no fogo do inferno. Vermelhos, verdes e amarelos ainda não aprenderam a verdadeira lição do saber separar o joio do trigo, o errado do certo, o feio do bonito. Quem sai e quem fica? Nenhum lado presta!

  Todos falam de democracia só da boca pra fora, sem ceder a uma alternativa diferente da patrulha ditatorial, tanto de um lado como do outro. Como porcos em chiqueiros fedorentos se enlameiam através dos contrassensos gritantes. Fartam-se de sujeiras. Nas manifestações, batem no peito e cantam meu hino falsamente, marchando ao lado de seus diabos capetas que mentem descaradamente, agarrados ao poder. Vivo hoje maltrapilho e desolado na gangorra do sobe e desce. Esconjuro-te, satanás!

  Não aguento mais com tantas armações de uma parte e da outra. Não suporto mais o peso de tantos partidos políticos caras de paus que invadem meus lares e sempre falam uma coisa e fazem outra. Cinicamente pregam que são limpos e fazem o diferente. Ainda aparecem aqueles que querem o retorno dos fuzis e das metralhadoras. Meu sistema eleitoral é velho, caduco, senil e feito para os poderes se perpetuarem. O sistema não é só bruto e estúpido, é mortal.

  Meus filhos continuam penando nas filas dos cadavéricos e contaminados hospitais, morrendo à mingua. Nunca se prontificaram de verdade a educar meus filhos, mas armar o compadrio com os donos particulares do ensino. Meus becos, esquinas, ruas, avenidas, praças, estradas e o campo foram tomados por assaltantes criminosos. Mais de nove milhões não conseguem trabalhar para comprar o pão e sustentar suas famílias, enquanto eles mantêm relações promíscuas com empreiteiros, banqueiros e grileiros.

   Enquanto os malditos poderes disputam meus lotes a tapas, na base dos palavrões, dos xingamentos, mutretas e roubos, estou definhando aos poucos e morrendo de vergonha. Na minha terra predominam a ignorância, a cegueira e o cada um por si. Minhas redes estão cheias de fascistas e fanáticos imbecis que alimentam de veneno seus donos e patrões.


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