Alexandre Galvão: ‘O PT, o Movimento Docente e as Contradições da Conjuntura: o que fazer?’

Foto: BLOG DO ANDERSON

Alexandre Galvão Carvalho | professor doutor em História Social

Muitos acham que a vitória de Jair Bolsonaro, dentre diversos fatores, se deu por conta do equívoco petista de manter o nome de Lula como candidato e depois apresentar Haddad como seu candidato definitivo, já de forma tardia. Um olhar retrospectivo, em meio aos cálculos petistas, nos leva a acreditar que o PT, incluindo cúpula e base, não tinha a exata noção do grau de rejeição ao partido, aos seus governos e à sua principal liderança. Seus membros sabiam do desgaste que o partido sofria, mas a reação à narrativa do “golpe” e à prisão de Lula, sempre propagandeada como uma prisão política, fiava as condições para que a opinião pública continuasse rejeitando as outras candidaturas (afinal, o PT fora tirado do poder), isso sem falar nas pesquisas que apontavam Lula na liderança da corrida presidencial. Leia a íntegra.

 

Se pensarmos que o PT venceu as últimas eleições presidenciais e foi golpeado pelas frações da burguesia que precisavam de um governo mais próximo às suas reais aspirações na atual conjuntura, é crível afirmar que o partido ainda não havia sofrido derrotas duras nas urnas, apesar das últimas eleições municipais já apontarem vetores de mudança. Doravante, a chegada de Temer ao poder e o seu rápido desgaste junto aos setores da classe trabalhadora combativa, bem como o ressurgimento – “tímido”, é verdade – das bases do partido, levaram a cúpula a acreditar que havia espaço para catapultar o nome de Lula e criar as condições para uma candidatura substituta.

Entretanto, a realidade reserva surpresas que escapam aos cálculos políticos, até mesmo dos mais habilidosos estrategistas. Obviamente, na condição de maior partido de “esquerda” – pelo menos, é o que consideram os seus militantes e a “direita” –, o PT poderia continuar dando as cartas nas alianças e mantendo o cacife de Lula no enfrentamento com as forças de “direita”. Ao inviabilizar maior tempo de TV para Ciro Gomes, após minar sua articulação com o PSB, Lula mantinha as peças do tabuleiro da mesma forma que as utilizava, quando o PT estava na presidência. Ciro não era e nem é de esquerda, mas acreditou que poderia criar um amplo leque de apoio à sua candidatura, tendo principalmente o PT como aliado. A aproximação do PT com o PSOL, em particular com Boulos, também foi outra estratégia importante, pois dava ao PT o lastro político que o partido já perdera há algum tempo – a imagem de um partido que transita no campo da esquerda, bem articulado com movimentos sociais. Enfim, a estratégia parecia correta ante os elementos que iam configurando o quadro pré-eleitoral.

O advento de Bolsonaro, uma candidatura desprezada incialmente, e depois vista como derrotável em um segundo turno, escapara à lógica dos cálculos políticos. A conjuntura também foi sorrateira com essa candidatura, quando uma inusitada “facada” acabou se tornando um trunfo fundamental de Bolsonaro. O que surpreendeu foi o apoio de uma parcela substantiva da população – excluída da participação política institucional, do mercado de trabalho, do consumo e com uma visão de mundo que constitui o senso comum – que se identificou com a candidatura de Bolsonaro por motivos muito “similares” aos que a levaram, no passado, a escolher Lula: a imensa falta de perspectivas oferecidas por nossas elites a essa parcela da população. Uma elite econômica, política e cultural, que continua se lixando para várias esferas da população, que em grande parte é composta por pessoas que recebem educação, saúde, condições de trabalho e equipamentos culturais de péssima qualidade, quando têm acesso. Uma população que não se vê incluída em nenhum centro de decisão, e que é diariamente tragada pelo absurdo grau de manipulação da produção ideológica dessa elite. Alienação, violência e falta ou péssimas condições de trabalho estão no epicentro do cardápio entregue pelas elites a esses setores. O PT não conseguiu perceber que essa parcela da população, próxima do projeto petista no passado, mais por pragmatismo do que pelos aspectos ideológicos, não iria compactuar com um partido no qual o seu presidente está preso e acusado de corrupção, apesar das pesquisas surpreenderem os mais céticos.

O imaginário popular, envolvendo os mais diversos estratos, vê nesse espetáculo um pouco de sua tragédia e, de forma imediatista e muito pouco politizada, procura e aponta os culpados para todas as suas mazelas. Antes, o PSDB, em particular FHC, caiu em desgraça, como resultado de um total distanciamento da realidade do país, que não é apenas SP. Agora, o PT e Lula são os alvos preferidos de tudo que possa significar “corrupção”, essa palavra mágica que pode inclusive traduzir um projeto de governo, quiçá de nação. A “luta contra a corrupção”, enredo de conhecidas peças de grupos políticos com cheiro de UDN, na atual conjuntura, como no passado, tem como protagonista a velha classe média, defensora dos bons costumes, reacionária, alérgica à democracia e que acredita resolver todos os problemas do país com a liberação das armas. O trágico, nesse circo de horrores, é constatar que aquela substantiva parcela da população excluída, que votou entusiasticamente no capitão, é o alvo: não apenas negros e negras, quilombolas, povos tradicionais, moradores da periferia, nordestinos, mulheres e LGBT, mas toda a classe trabalhadora será vilipendiada, escorraçada e massacrada de todas as formas.

Causa estranheza, nesse cenário pós eleitoral, a cobrança de uma autocrítica do PT. Sem explicitar que tipo de autocrítica se pretende, setores que ontem estavam mais identificados com a direita, ou setores mais à esquerda que votaram em Haddad por pura falta de opção, cobram de forma enérgica essa autocrítica. É verdade que a autocrítica é uma prática salutar, principalmente após um longo ciclo de governo, encerrado com uma dura derrota para a ultra direita. Mas será que essa autocrítica do PT iria mudar os rumos das estratégias de enfrentamento ao governo de direita, eleito pelo voto popular? Me pergunto isso, porque acredito que o DNA do PT não é a autocrítica, muito menos mudanças abruptas em sua estratégia de retomada do poder. Não acredito que o partido irá admitir que o ciclo da conciliação de classes chegou ao seu final. Pelo contrário, creio mais em um redimensionamento de novas estratégias – restritas ao campo institucional, evidentemente –, para criar novas condições de retomada do poder. Não seria nenhum problema, afinal o PT é um partido inserido na ordem burguesa, e hoje, mais do que nunca, luta pela sua sobrevivência ocupando os espaços institucionais dessa ordem.

Ora, se a autocrítica petista não será a senha para a retomada de imensas e duras lutas que a esquerda terá que enfrentar em curtíssimo espaço de tempo, então o que fazer?  Exorcizar o PT, ou se juntar a ele, em uma grande frente parlamentar para derrotar o projeto protofacista? Nem uma coisa, nem outra. A construção da mais ampla unidade de todos os setores, em defesa das liberdades democráticas, dos direitos trabalhistas e do serviço público de qualidade, também deve incluir o PT. Não poderemos prescindir de ninguém, nessa longa e dura jornada contra o fundamentalismo bolsonarista, que pretende destruir o ativismo político, exterminando todas as ferramentas de luta da classe trabalhadora. Entretanto, essa unidade não pode pressupor a construção de uma frente parlamentar com exclusivos objetivos eleitorais. A hercúlea tarefa da classe trabalhadora é a construção de espaços de reflexão e lutas plurais, que envolvam todos os partidos, movimentos sociais, coletivos, sindicatos e associações, com pautas e ações que sensibilizem a sociedade civil. Precisamos sair de nossos casulos e recriar as formas de atuação política para o enfrentamento, mas também convencer a população de que o projeto bolsonarista é um grande retrocesso. Não será um partido, um sindicato ou um movimento social, mas o conjunto desses atores, que deve ser ativado.

Entretanto, a construção de Frentes, por si só, com objetivos claros, não esgota o conjunto de estratégias dos setores combativos. Os problemas atuais que a classe trabalhadora enfrenta não se encerram somente na ascensão de um governo de direita, mas também nas contradições que encontramos com os governos que se apresentam com a estampa de “esquerda”, ou oriundos de frentes populares. Como dissemos antes, não nos parece que o PT esteja disposto a fazer autocríticas. Nos estados e municípios governados pelo PT, as políticas de contingenciamento e de ataques aos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras seguem os mesmos receituários dos governos de direita ou centro direita, ou seja, com “ajustes fiscais” que se traduzem em congelamento de salários e ataques aos direitos dos servidores públicos. Sob a administração de governos petistas, o serviço público passa a ser o vilão da crise, o alvo responsável pelas mazelas dos estados e municípios, tendo o seu significado e papel totalmente invertidos, uma vez que a prestação de serviços de qualidade à maioria da população é precarizada por governos obstinados em servir aos setores privados, isto é, aos detentores do capital. O governo petista, no Estado da Bahia, não foge a essa regra, e nem de longe pode ser considerado uma exceção, pois antecipa-se ao governo Bolsonaro, atacando a previdência dos servidores públicos e aumentando a alíquota de contribuição desses servidores; engana a população, ao informar que o rombo da previdência poderia pagar as despesas de construção de hospitais e escolas, sem, no entanto, explicitar que o Estado vem diminuindo a sua contrapartida ao longo dos anos, desresponsabilizando-se com a previdência dos servidores e utilizando este fundo para outros fins; mente, em entrevista à TV, ao afirmar que aumentou em 42% o salário dos profissionais da educação, apesar dos salários dos servidores públicos estarem congelados por quatro anos; manda fechar escolas públicas estaduais e setores do serviço público, em nome de um redimensionamento e contingenciamento estatal. O ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, já pode ter o governo petista da Bahia como exemplo e parâmetro a ser seguido, na tarefa de desmonte do serviço público de qualidade. Não por acaso, o govenador Rui Costa já disse que está pronto para colaborar com o presidente.

Portanto, a realidade é muito mais turva do que parece. Essas contradições da conjuntura se inserem no contexto da crise estrutural do sistema capitalista, vivenciado de forma mais abrupta em sua periferia. Governos de direita e neo-liberais quando chegam ao poder, seja pelo voto, seja por meio de golpe, têm como meta levar a cabo políticas de austeridade que destroem direitos dos trabalhadores e trabalhadoras e sustentam a dívida pública para financiar boa parte do capital financeiro, prática de muitos governos de conciliação de classe. O recrudescimento do conservadorismo no Brasil, com sua pauta moral, não é um fenômeno isolado. Na verdade, é intrínseco à espoliação das conquistas da classe trabalhadora.

Nesse cenário, a mais ampla unidade não será inviabilizada, diante das contradições de tal conjuntura. Pelo contrário, abrem-se novas possibilidades de organização e de lutas. Lutar contra os ataques de Bolsonaro não obstaculiza lutar contra governos petistas ou de frentes populares que porventura venham atacar os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, pois o que está sob ameaça no momento é muito maior do que as disputas eleitorais ou as bandeiras de um partido ou de uma central sindical.

No caso mais específico do Movimento Docente das Instituições Estaduais de Ensino Superior da Bahia, organizado no Fórum das Associações Docentes, tem havido intensa participação nos mais diversos e amplos espaços que se organizam em defesa de pautas unificadoras. Estes espaços obtiveram razoável sucesso contra os recentes ataques de Temer, criando novas perspectivas de organização. Nesse sentido, o Movimento Docente tem como desafios, não apenas os grandes embates contra o governo Bolsonaro, mas também os ataques aos direitos e condições de trabalho perpetrados pelo governo da Bahia aos servidores públicos e à Universidade. Uma luta não impede a outra.

Após as vitoriosas greves nos últimos anos em defesa de melhores condições de trabalho, da carreira, autonomia e da qualidade das Universidades, o Movimento Docente enfrenta novamente a mesma realidade que o levou aos grandes confrontos do passado recente: a interdição do diálogo; o desrespeito ao Estatuto do Magistério, conquistado depois de muita luta contra o governo carlista e o sucateamento das Universidades. Com informações inverídicas à população e total desrespeito ao trabalho dos docentes, o governo volta a empurrar o professorado para a luta radicalizada em defesa de sua dignidade.

A educação pública gratuita, laica, de qualidade e socialmente referenciada é direito da população, uma conquista garantida na Constituição. A UNEB, UESB, UEFS e UESC são as grandes responsáveis pela interiorização do ensino superior público e geradoras de conhecimento de qualidade por meio do ensino, pesquisa e extensão. As Universidades Estaduais têm contribuído de forma aguda para a erradicação da pobreza, deixando um legado de transformação da realidade social e econômica da Bahia. Portanto, defendê-las, é defender um patrimônio de toda a população e sociedade baiana; atacá-las, é atacar o povo baiano.

Alexandre Galvão Carvalho

Prof. Titular do Departamento de História da UESB e Doutor em História Social

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do BLOG DO ANDERSON


4 Respostas para “Alexandre Galvão: ‘O PT, o Movimento Docente e as Contradições da Conjuntura: o que fazer?’”

  1. Paulo

    Professor Alexandre, “ilustríssimo professor de história”, defensor dos pobres e

  2. Paulo

    Professor Alexandre, “ilustríssimo professor de história”, defensor dos pobres e movimentos sociais…
    TUDO UTOPIA…
    Fui aluno no curso de história na UESB e o que vi e presenciei foi um jogo de interesses políticos e orientações partidária ideológica.
    Professores marxistas, mas usando carro importado, muitas falácias e críticas, mas sem projetos concretos para geração de emprego e renda.
    Visão crítica é poder ter de forma racional, exemplos na prática de lealdade e honestidade aos princípios morais, de uma sociedade que cansou de mentiras!
    Numa democracia é simples, não deu resultado, trocamos o político!
    O PT ficou quanto tempo no poder e cadê as soluções esperadas pela população?

    Sejamos verdadeiros o nosso principal sentimento! “O desejo de termos dias melhores”

  3. Marcus Fagundes

    Excelente análise conjuntural do Prof. Galvão! A sociedade brasileira só terá mudanças significativas em sua estrutura com a mobilização total da sociedade em prol de interesses coletivos supra partidários ou politiqueiros! Avante Brasil!!

  4. Iolanda

    Independente das divergências políticas, achei q foi uma ótima análise da conjuntura atual. Ótimo artigo.

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