Marco Antonio Jardim: “Tem rocha no pátio do Memorial”

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Marco Antonio Jardim | @marcoajardim

Subi as escadas do Memorial na companhia de um Glauber irascível, mas cheio de entusiasmo.
Companheiro de alma intensa, encostou-se, de rompante, na parede da pequena entrada e gritou surdo, como num adesivo protestante: “Ressuscitem o povo nesse exato instante!”.

Segurei, assustado, o gradil enferrujado e, aqui e ali, na casa rosada, abandonada ao tempo, vi Glauber com a câmera nas mãos e as ideias escorrendo feito palha do teto ao chão azulejado, das amplas janelas do lado de fora ao caminho marcado, em nome da arte, da política, da contestação.

Glauber desprendeu da alma no mais completo contraste (e encanto) com o absurdo da paisagem, entregando-se homem e tempo na intervenção da nouvelle vague exibida numa pequena TV. >>>>>>
Sentimental, queixou-se da noite de calor, e rompeu o cotidiano do meu olhar estivador nas fotografias mortas da sala de estar, deitando-se calcário num caixão.
Acima de mim, um céu azul uniforme, quase opressor.
Abaixo, folhas secas e Glauber, sepultado em laje marmórea.
Escutávamos Salvador, não seguíamos nenhum mostrador, nenhum ponto cardeal, mas o vi aos cochichos por entre as pérolas suspensas com Anecy, confidente, inocente anjo fatídico, protetor.
Eu o ouvi dizer frases esparsas: “Nós, mulatos, brasileiros, sertanejos…uma nova utopia…Por que a burguesia?”.
Não compreendi de pronto, mas a única inclinação que nos conduziu naquela noite foi a repentina vontade de chegar a um batuque além, como um ponto de Candomblé.
Tracei planos, pisei reto, segui o arquiteto que gritou a reforma estrutural.
Glauber parou numa sala clara, esqueceu-se de si e de seu relicário de tintas gastas, embrulhou-se numa manta de renda e orou ajoelhado.
Parecia sem tempo de temer a morte.
Notei que já era um homem de meia idade, ainda bonito, forte, pele preservada, olhar clarividente.
Marginal ou herói, ocasionalmente.
Permitia-se, por segundos, fumar um cigarro, recostando o olhar profundo no parapeito da janela do bar Alvorada, debruçado numa rocha, quase ao Pátio do Memorial.
Durante toda a noite, fiquei a observar os rumos do seu olhar inquieto, o vento balançando as finas folhas do ramo de erva doce que Helena havia colocado em seus cabelos, cachos de banana no quintal.
Apesar do tempo quente, Glauber usava um agasalho de gola alta e meias sob a sandália de couro, sustentando o corpo vigoroso e visionário, uma voz grave, entoando às barras dos ventos seu puxado de “s” em tom fatal.
Afora alguns traços de um semblante aparentemente jovem, Glauber tinha uma curiosa linha de expressão, desenhando um grande arco em volta da boca e franzindo a testa, como se constantemente risse das circunstâncias de ocasião.
Com o gesto das mãos em riste, cobrindo parte do rosto, recordei que foi na velha escola dos meus pais que ele aprendeu a datilografar.
Nunca dirigiu a mim muitas palavras, uma ou outra observação protocolar.
“O que você faz?”, perguntou-me certa vez. E completou: “Você parece calmo”.
Noutra, como um infante terrível, interrompeu um breve convescote, escolheu um fogo, um norte, e (se) consumiu.
Glauber era um desses homens que, antes que o transformassem num mal-entendido, inventou uma bússola e a tinha como franca companhia.
Ainda o vejo tergiversando em Sintra, exprimindo a plenos pulmões o verão que sentia.
Mesmo se o notasse às minhas costas, no Pátio, enquanto eu estendia, com Ana Lúcia, os panos no varal – Ava, Eryk e Rubi comendo pipoca sentados ao chão -, ele chamaria minha atenção.
É daqueles homens controvertidos, ou incompreendidos, que fazem encontrar o caminho de volta quando se viaja noutra direção, nas Terras em Transe, depois das curvas da criação.
Quando Glauber se foi, por esses dias, até tive alguma saudade do projetor, do mensageiro do delírio, daquela luz em propensão.
Cedi, por dias a fio, às palavras escritas, coladas nos vitrôs da janela, rompendo qualquer voz que soasse importada (ou embargada).
No entanto, passado o tempo da ânsia de viver mais – ainda que eu nunca soubesse exatamente o que fazer do tempo, como Glauber não sabia sempre o que dizer ao povo -, fitei o presente do futuro num grito sobranceiro.
Talvez seja esse o propósito do seu cinema novo: ressuscitem o povo brasileiro!

(Marco Antonio Jardim)


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