João Batista Castro Júnior: Moro na PF, um ato rídiculo

Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil

João Batista de Castro Júnior

No dia 23 de junho de 2019, quando do vazamento das mensagens entre ele e procuradores pelo The Intercept, que devassou a urdidura ilegal e imoral para condenar Lula e atirá-lo ao calabouço, Moro soltou um tweet: “Um pouco de cultura. Do latim, direto de Horácio, ‘parturiunt montes, nascetur ridiculus mus’”. A expressão horaciana, livremente traduzível como “as montanhas estão em trabalho de parto, nascerá um rato ridículo”, é muito utilizada para significar algo parecido ao que Shakespeare pretendeu ao intitular sua famosa comédia “Much ado about nothing”, ou seja, “Muito barulho por nada”. Leia a íntegra do artigo do professor João Batista de Castro Júnior.

Particularmente, duvido que Moro tivesse lido essa expressão horaciana direto da literatura clássica, já que nunca foi capaz de lembrar nem de títulos mais conhecidos contemporaneamente. É mais provável que, naquele instante, a frase em latim, transmitida por alguém, lhe tenha caído nas graças por atuação preditiva do inconsciente acerca da assimetria entre o que excepcionalmente o julgaram ser e o que seria chamado no futuro a revelar sobre o que de fato sempre foi.

É que, em realidade, mesmo alçado ao estrelato pela mídia corporativa, Moro nunca efetivamente conseguiu desasnar-se de sua crassa ignorância jurídica e de sua péssima formação intelectual, que jamais permitiriam que ele fosse posto em comparação com o histórico e quase extinto bacharel beletrista, que manejava com mestria uma retórica rica de floreios e se agigantava na tribuna forense com oratória um tanto barroca à imitação do Padre Vieira, recheada do que se conhece como conceitos predicáveis.

Esse tipo, que cientistas sociais nativos desprezaram com o argumento de que serviam apenas à alienação pretendida pelo modo burguês de apropriação econômica, desapareceu para dar lugar à busca pelo estilo mais enxuto, mas mais cheio de técnica, por aqui pregado pelo jurista americano David Trubek ao tempo do MEC-USAID da Ditadura Militar.

Contudo, apesar dessa pedagogia ianque no âmbito de uma propaganda ideológica mais extensa, foi o fascínio com o germanismo jurídico que seduziu muito mais os novos candidatos brasileiros ao posto de juristas germanófonos, ainda que a teoria alemã do Direito esteja cheia daqueles misticismos estéreis incapazes de traduzir-se em correspondências socialmente empíricas ou mesmo em gestão eficiente de processos judiciais.

Bem, Moro não consegue ser enquadrado em nenhum desses modelos. Ele apenas ouvia ecos dessa nova cultura jurídica e se esforçava mal e mal para estar à altura dela. No fundo, sua aparente notabilidade intelectual foi promovida por uma mídia corporativamente mais interessada em destruir as fundações políticas do PT. Apesar disso tudo, quando abalou as estruturas do establishment político ao se divorciar de Bolsonaro, surgiu a expectativa de que finalmente pudesse se redimir de parte de suas barbaridades na Lava Jato, passando a ter finalmente alguma prestança forense.

Pessoalmente, nunca acreditei que Sérgio Moro conseguiria produzir um libelo acusatório contra Bolsonaro sem conseguir deixar de ser corréu. A chance de isso acontecer seria apenas se ele fosse tecnicamente preparado para bem angariar provas de mão única. Mas, sem habilidade com provas de qualquer espécie, acostumado, como juiz, a condenar sem se valer delas e sim somente de ficções indiciárias mal alinhavadas, foi à Polícia Federal depor sem saber como previamente montar um bom plano jurídico.

A PF, talvez até sem querer, terminou, com a demora do depoimento, produzindo um resultado similar aos da temida polícia política da extinta Alemanha Oriental, a STASI, que conseguia fazer aflorar a falsidade dos depoimentos obrigando o depoente a repeti-los várias vezes e até de trás pra frente. Parece que o inexplicável tempo de mais de 7 horas para uma narrativa ao fim e ao cabo tão lacônica tenha cumprido esse papel nas declarações do ex-Ministro da Justiça, que tropeça em contradições que só fazem ajudar a incriminá-lo.

A cada passo, em verdade, Moro trai sua conivência, a exemplo de quando nega adesão às interferências de Bolsonaro na PF mas não consegue explicar por que consentiu com a substituição de Ricardo Saad da Superintendência do Rio. Num primeiro momento diz que aceitou porque o próprio Saad queria sair por razões familiares. Linhas à frente – que podem significar horas depois –, afirma que ele e Valeixo concordaram somente “após muita resistência”. Ou bem uma coisa ou bem outra, em nome do princípio do terceiro excluído (tertium non datur).

Digno ainda de nota é quando tenta atirar somente seu ex-chefe às teias do crime e termina tropeçando nos fatos. Assim é que, depois de insinuar que Bolsonaro queria a todo custo ter acesso a relatórios de inteligência da PF, acaba por dizer, por duas vezes, que “o Presidente nunca lhe pediu isso”, até porque nem ele nem Valeixo “jamais violariam o sigilo de investigação”.

Na mesma linha é seu plano da montagem de um aparato probatório que possa lhe ajudar nos desdobramentos investigatórios que virão, quando então faz uma jogada no mínimo arriscada e que pode vir a ser reduzida a zero: afirma que o general Augusto Heleno, conhecido aliado de primeira hora de Bolsonaro, o apoiou na reclamação de que o Presidente queria relatórios de inteligência da PF. Porém, basta o macróbio Heleno sair-se com o velho ardil do “não me lembro” e esse ponto da acusação de Moro rui.

Igualmente frágil é a informação de que começou a apagar mensagens depois da Vaza-Jato, sem explicar por que razão conservou algumas antigas que não parecem sustentar a suposta interferência política.

Sem muito esforço, percebe-se que o depoimento de Moro é um edifício de incoerências cimentadas aqui e ali pela vã tentativa de se desenvencilhar dos crimes. Esse talvez seja o mal do juiz acostumado ao excesso de confiança em seu próprio poder e que, como criticava Piero Calamandrei – notável jurista e jornalista italiano, que, diferentemente de Moro, se recusou corajosamente a servir ao Fascismo –, se habituou, sem prestar atenção aos detalhes das contradições, a fazer “de albo nigrum et de quadratum rotundum”, ou seja, “do preto branco e do quadrado redondo”.

Se um juiz em tese raramente é responsabilizável por isso, Moro parece ter esquecido que não mais enverga a toga. Seu depoimento agora, em realidade, pode ser categorizado como confissão por deixar à mostra as ligações ilícitas com Bolsonaro, até porque sempre foi seu avalista nos tempos em que era um “conge” feliz, a ponto de tentar manobras tortuosas, como no caso Marielle, em relação ao qual advogou, sem qualquer base constitucional, uma estranha e inexplicável federalização quando o porteiro começou a falar.

Nessa qualidade jurídica de confissão, portanto, Moro, pelo que disse à PF, não tem como se furtar à incidência da primeira parte do art. 395, do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal (art. 3º, do CPP): “Art. 395. A confissão é, em regra, indivisível, não podendo a parte que a quiser invocar como prova aceitá-la no tópico que a beneficiar e rejeitá-la no que lhe for desfavorável”.

A rigor, ele e seu ex-chefe teriam que ser responsabilizados. Mas, pela falsa expectativa e pela inconclusividade produzidas, é provável que Augusto Aras, bem a seu feitio acomodatício, ao fim inocente os dois e seja referendado pelo Supremo Tribunal, passando a figurar como o terceiro elemento na parição da trama fascista vigente neste País graças à ação de Moro e à omissão do STF durante a Lava-Jato.

Vitória da Conquista, Bahia, 5 de maio de 2.020, 21h30min.

 

João Batista de Castro Júnior. Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia, campus Brumado.

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do BLOG DO ANDERSON


Os comentários estão fechados.