Trovador medieval

Foto: Divulgação
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Julio Maria – O Estado de S.Paulo

O bode fugiu. Deixou a Fazenda Gameleira, a 22 quilômetros de Vitória da Conquista, tapou o nariz e desceu para o mundo que não lhe pertence. Olhar para a gente de uma época que desvirtua o sentido da existência, andar entre prédios comendo fumaça e subir a um palco para a árdua tarefa de cantar é o preço que o bode paga para continuar sendo um bode. Se não fosse por um bom motivo, Elomar, o bode, jamais sairia das terras de seu sertão medieval. É lá que ele cria carneiros, bois e cavalos em uma dimensão que parece anteceder a existência do próprio sertão, uma era que só se conecta com o século 21 por meio da música que faz.

Elomar Figueira Mello sai de sua Fazenda Gameleira, que ele também chama de Casa dos Carneiros, para mostrar em São Paulo, de amanhã a domingo, parte das 49 canções que estão organizadas no livro Elomar Cancioneiro, uma espécie de songbook com a reprodução de detalhes melódicos e harmônicos sobre uma das linguagens mais originais desenvolvidas na canção brasileira. Seus shows serão na Caixa Cultural, às 19h30, e terão 15 músicas arranjadas para voz e violões, respeitando uma variação de formatos que vai do solo, com apenas o trovador e seu instrumento no palco, ao coletivo, com até cinco acompanhantes. Entre eles, estarão os violonistas Maurício Ribeiro, Hudson Lacerda, Avelar Júnior e Kristoff Silva, além da cantora Letícia Bertelli.

Elomar sai de casa sem abrir mão de uma antiga exigência, da qual discorda até o próprio filho: nada de entrevistas. “Ele diz que já falou tudo o que tinha para falar. E eu digo que não vejo motivo para esta postura”, diz João Omar, músico que também acompanha o pai.

Seu silêncio é protesto. Como um personagem de Almodóvar, acredita que o mundo que cria e destrói celebridades com a mesma ferocidade não merece suas palavras. “Ele não vê mais razões para falar”, diz João. E então Elomar canta. E fala o que tem de falar entre uma música e outra.

Suas canções são o que os estudiosos chamam de modais, criadas sobre modos em vez de tons. Se surgissem em uma escada, apareceriam no meio, subindo ou descendo sem respeitar necessariamente a ordem dos degraus, como faz a tonal. “A modal está mais inserida em uma manifestação antropológica do que em um pensamento racional”, diz João. Arriscando outras palavras, seria o mesmo que dizer que mais do que refletir genialidades harmônicas, como faz a música popular brasileira como herança da bossa nova, o cancioneiro de Elomar traduz uma era que só está aqui quando ele canta.

As trovas e as cantigas que desenvolve sobre esta estrutura trazem uma carga genética ibérica, por sua vez carregadas historicamente de sonoridades árabes, que chegaram ao Brasil nos alaúdes portugueses da colonização. O braço de seu violão tem as cordas presas na terceira ou na quinta casa por um capo traste, uma pestana artificial, que lhe garante trabalhar com liberdade nas regiões mais agudas. E a terminologia que usa nas letras para cantar suas cantigas de amor e de amigo é outro objeto de estudo que já rendeu teses de mestrado.

O sertão de Elomar não é o sertão padronizado pelo conjunto de signos da música sertaneja popular. Aos 76 anos, mais de 300 músicas gravadas em 15 discos que poderiam ser bem mais, suas raízes descem em direção ao bandeirante fundador de Vitória da Conquista em 1783, o sertanista João Gonçalves da Costa. Seu filho João confirma se tratar do mesmo homem que daria origem à família de dois primos distantes, o também músico Xangai e o cineasta Glauber Rocha.

Glauber quis gravar um filme com o primo Elomar nos anos 60, mas não o fez por causa de um dente de ouro. “Ele queria que meu pai retirasse o dente, que reluzia demais nas câmeras. Meu pai não quis”, diz João.

Sua formação não é puramente autodidata, apesar de ainda respeitar muito mais o instinto do que o cérebro. Elomar estudou música primeiro com uma professora de violão. Mais tarde, ingressou na Universidade Federal da Bahia para aprender composição mas, como era o único aluno de sua turma, acabou dispensado e o curso, encerrado. Ao saber da história, o pianista Carlos Lacerda festejou. “Ainda bem que ele saiu.” Se tivesse estudado mais, talvez escolhesse outros caminhos.

O “bode” não é uma força de expressão. “É assim que chamamos ele por aqui”, conta o filho. Elomar vive apenas em companhia de bichos e vaqueiros. A informação chega pelos amigos e o que o move não é uma carreira artística, mas a necessidade de materializar sua era medieval. “Ele não gosta de cantar, mas canta assim mesmo.”

ELOMAR
Caixa Cultural São Paulo. Praça da Sé, 111, Centro
Informações: 3321-4400. 6ª a domingo, às 19h15
(no sáb., 10h30, Encontro com os músicos – 30 lugares, ordem de chegada)
Grátis (Retirar ingressos na bilheteria 1 hora antes do início do espetáculo)
Atenção: não é permitido fotografar e/ou filmar o show ou o encontro.


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