João Batista Castro Júnior: A decisão de Moraes e as maquinações políticas do STF

Foto: BLOG DO ANDERSON

João Batista de Castro Júnior

A decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes era previsível, mesmo contrariando o entendimento de que o Judiciário não deve interferir em atos propriamente políticos, como declarou o STF com todas as letras na primeira ADPF que lhe bateu às portas, proposta pelo PCdoB numa questão comezinha, sem grande relevância nacional: o então Prefeito do Rio de Janeiro inconstitucionalmente não motivou o veto a uma lei que havia elevado o valor do IPTU para o exercício de 2.000. Os Ministros do STF foram uníssonos em rejeitar o pedido: “não podemos adentrar a motivação política”.Confira na íntegra o artido do Doutor João Batista Castro Júnior extraído do site PROBUS.

Para escapar agora dessa belíssima predicação constitucional, a decisão de Moraes lança mão do velho subterfúgio de sempre com aquelas platitudes teoricamente vagas sobre moralidade, socorrendo-se de trechos de decisões de colegas e de excertos de juristas conhecidos dentro e fora do País, chegando ao ponto até de apoiar-se na entrevista de despedida de Sérgio Moro do cargo de Ministro da Justiça, um indivíduo contra o qual pesa a mesma investigação aberta contra Bolsonaro.

A fim de entender bem por que essa decisão tem a coragem de inovar e contrariar o histórico da jurisprudência do STF sobre o assunto, é melhor começar deixando de lado aquele método, comum entre estudiosos e aprendizes de Direito Constitucional, que se funda na procura de algum padrão estritamente jurídico nas dobras dos votos dos precedentes que parecem ser tão discordantes.

Isso é um tremendo equívoco téorico-metodológico, até porque opiniões e conceitos jurídicos são como luva de borracha, para a qual é difícil achar uma mão que ali não caiba. Em realidade, essas decisões têm que ser escrutinadas através de exercício metadogmático instrumentalizado por ferramentas da Sociologia Política e mesmo da Análise do Discurso, tornando-se então o caminho capaz de fazer aparecer, nessas horas, o real padrão oculto: o STF só vai até o ponto em que se dá conta de que não tem nada a perder com uma decisão que contrarie o humor político.

Quando há esse pano de fundo, a Suprema Corte brasileira se apresenta dotada de grande musculatura institucional e aí usa um ás na manga indiciado por Juvenal há séculos: ninguém manda nos guardiães judiciários e, portanto, eles podem fazer o que querem com aqueles votos cansativos, sem sal ático e até soporíferos entre seus próprios emissores.

Caso emblemático da história recente foi o inquérito aberto pelo próprio STF: não há previsão legal ou regimental para uma investigação desse tipo, porque o sistema acusatório diz que cabe ao Ministério Público tomar a iniciativa. Mas aí entrou outro busílis (esse termo é um tanto bacharelesco, mas vá lá): corre a suspeita do envolvimento de alguns procuradores na campanha difamatória virtual contra a Corte. Apavorados pelo risco de serem descobertos, teriam pressionado a então PGR Raquel Dodge a se insurgir contra essa anomalia investigatória.

Alexandre de Moraes dobrou a aposta e, mostrando quem manda, manteve o inquérito sem que o Ministério Público pudesse fazer coisa alguma, até que Augusto Aras chegou sinalizando não querer esse atrito. Ainda mais recentemente, Moraes criou outro monstrengo jurídico: em plena ebulição da saída de Valeixo e de Moro, determinou a permanência de dois delegados da Polícia Federal no mesmo inquérito, quando se sabe que de inamovibilidade só gozam juízes e membros do MP.

Com tal fisionomia jurídica instalada, quem poderia desfazer sandices judiciais como essas, inclusive a suspensão da nomeação do novo Diretor Geral da PF? Só o próprio pleno do STF, que ordinariamente, contudo, não é acionado quando há interesses ocultos e concordantes de grande monta em jogo, como no caso da longa e imoral permanência da decisão de Luiz Fux sobre auxílio-moradia destinado a juízes, procuradores e promotores, que expirou sem jamais ter sido levada a julgamento colegiado.

Eis, portanto, o que em síntese sumariza o jogo de poder do STF, pelas lentes da mais recente decisão de Alexandre de Moraes: o Sistema Nacional de Justiça, entendendo-se como tal Judiciário e Ministério Público, pode estar se tornando o ovo da serpente muito mais perigoso que qualquer uma das partes em litígio.

Por Justiça, caveat lector, deve-se entender a cúpula do Judiciário, que está montada sobre um escalonamento afunilado que funciona como um anteparo cuidadosamente elaborado com tantos recursos e ações originárias previstos na legislação. Eles não existem por acaso, pois, quanto mais se sobe o degrau da hierarquia judiciária, menor a possibilidade de que, em situações de impacto político, haja uma decisão estritamente dentro dos trilhos constitucionais.

Essa montagem atual da estrutura judiciária, com capacidade de grave interferência política, guia-se então na prática, repita-se, menos por respeito à Constituição do que por anabolização corporativa, o que é perigoso para a democracia por não estarem esses agentes sujeitos ao escrutínio da escolha popular.  Mas, sem resistência, estão avançando sobre as linhas divisórias do mapa constitucional brasileiro com esse mais novo e ousado plano: ajudar na renúncia ou o impeachment de Bolsonaro, com que Mourão assumiria o posto e entraria em cena, para as relações com o Judiciário, inclusive para nomeações, seu notório amigo pessoal, Thompson Flores, que era o presidente do TRF-4 quando Sérgio Moro pintava e bordava na Lava-Jato, chegando a garantir ao delegado da PF que descumprisse a ordem do desembargador Favretto e não soltasse Lula.

A vingar esse projeto, Moro subiria fácil ao STF, onde poderia até forçar Gilmar Mendes a se aposentar com alguma mensagem de whatsapp conseguida por dissimulação, sua única habilidade profissional conhecida até agora.

O plano do STF, que pode estar se fundando numa falsa percepção de cismogênese simétrica entre Bolsonaro e Moro, é uma aposta arriscada pela existência de variáveis sem muita nitidez ainda. Muito mais simples foi impedir a nomeação de Lula como ministro de Dilma, mesmo assim Gilmar Mendes se arrependeu dessa barbaridade judicial, já que afinal hipertrofiou Moro de tal maneira que o então juiz federal passou a ser o incômodo suprajurídico pairando [até hoje] sobre as decisões da Suprema Corte.

Mas, enfim, parece inútil chamar atenção para todos esses achaques se eles atuam como privilégio intangível do Judiciário. Parafraseando o moralista francês La Rochefoucauld, a única coisa que o STF só não suporta, na hora de decidir, é ver nos outros seus próprios defeitos.

Vitória da Conquista, 29 de abril de 2.020, 16h.

João Batista de Castro Júnior. Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia, campus Brumado. Mestre em Linguística Histórica e Doutor em Linguística e Cultura pela Universidade Federal da Bahia.

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do BLOG DO ANDERSON


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