Ione Rocha Cabral e a Biografia da Irma Dulce | sobre o livro “Alem da fé” de Valber Carvalho

Fotos: BLOG DO ANDERSON

Ione Rocha Cabral

Aprendi com o filósofo Aristóteles que a memória se constitui de um conjunto de lembranças, que quando evocadas, nos afetam profundamente como uma marca deixada pelas experiências da vida. Com o sociólogo francês Maurice Halbwachs aprendi que as memórias de nosso cotidiano pessoal que ficam são importantes, mas são as memórias coletivas, aquelas compartilhadas por um grupo, dentro de um “quadro social” que se tornam audíveis, capazes de ressoar e se concretizar nas obras, hábitos e lugares de memória.

Ao visitar o santuário hoje dedicado a Santa Dulce dos Pobres, ao lado de seu memorial que reúne itens de seu uso e gosto pessoal, como também registros da obra comunitária que se ergueu através do trabalho diário de Irmã Dulce, encontramos sentido na lembrança, memória, devoção e podemos saborear um pouco daquilo que está “além da fé”. Ali, nossas lembranças individuais da freira que mesmo demonstrando sua timidez era frequentemente entrevistada nos jornais e telejornais das décadas de 80 e 90, encontra-se com objetos, símbolos que nos conectam intimamente com sua vida, e nos faz conhecer melhor e reconhecer a sua memória como expressão do divino aqui na Terra. Leia a íntegra.

“Além da fé” é uma expressão que nos chama para ultrapassar o limite da simples devoção, mergulhar numa vida que teve jeito de Deus antes mesmo de chegar ao mundo e à vida religiosa. Assim se intitula a obra de Valber Carvalho que nos apresenta detalhes da vida de Santa Dulce dos Pobres com uma clara delicadeza que quem ama e admira essa trajetória, ao mesmo tempo com rigor de pesquisa, embasada na vida de quem conhece os territórios onde Maria Rita Lopes Pontes se tornou Irmã Dulce, Anjo Azul, Anjo Bom, Santa das ruas, Venerável e por fim Santa Dulce dos Pobres.

Mas não se trata somente de uma obra que reflete a paixão do autor: trata-se de um trabalho de pesquisa, uma investigação a partir de centenas de entrevistas, inumeráveis documentos, fotografias, figuras humanas e lugares de memória, com a riqueza e retidão do bem fazer da pesquisa histórica e da comunicação jornalística. Sim, o autor Valber Carvalho nos indaga e convida para ir além da fé, porque fez isso ao registrar o horizonte da vida religiosa de Santa Dulce, suas obras, sem as quais a fé é morta.

Pois bem. Movida pela minha devoção pessoal e especial emoção que me toma ao pensar em Santa Dulce, em uma de minhas visitas mais recentes ao seu santuário, o convite para ir “além da fé” chegou a mim, naquela capa de livro em tom de pergaminho, com o rosto delicado da jovem Irmã Dulce estampado. Folheei rapidamente a publicação e no exercício das manias típicas de professora fui ver de fato quem era aquele autor e as referências da obra. Quando me deparei, em uma das abas do livro, com o rosto simpático daquele jornalista de voz mansa que frequentemente eu via na televisão após a “santa missa em seu lar”. Figura bem conhecida, especialmente para os católicos. Ao ler a pequena apresentação do autor e obra, uma coincidência me chamou a atenção: as pesquisas para a composição daquele livro se encaminhavam desde junho de 2013, ano que comecei a planejar minha mudança para a cidade de Salvador, quando comecei a observar aspectos da cidade e a despertar um pouco mais de curiosidade sobre a vida e as obras sociais de Irmã Dulce.

Foram 3 anos a partir de 2014 que vivi em Salvador, me dedicando à finalização de uma pesquisa sobre como segregação socioespacial, especulação imobiliária e memorial social coexistiam em Vitória da Conquista. Me debruçar sobre tais questões me fazia olhar para a Salvador com os mesmos questionamentos, quando em muito me identificava com a cidade baixa e, embora morasse longe dali, sempre que podia aquele era meu roteiro de passeios: Caminho de areia, Roma, Bonfim, Ribeira… Especialmente passei a preferir esse roteiro, quando, em um final de tarde de domingo passando pela avenida dendezeiros, observei uma fila muito grande que avançava por vários quarteirões, com pessoas deitadas em panos, esteiras e sentadas nas calçadas. Sobre esta cena meu esposo me explicou que aquele povo estava ali porque era a área das obras sociais de Irmã Dulce e que as pessoas vinham das cidades do interior em busca do atendimento especializado oferecido.

Foi então que me situei no espaço e entendi que era ali, no território da península de Itapagipe – que expõe a contradição entre a beleza de suas praias, igrejas e paisagens e as condições de vida daquela ampla parcela da população pobre – que Irmã Dulce caminhava nas reportagens que eu via na televisão quando eu era criança. Foi ali, na porção pobre que não interessava à indústria do entretenimento e turismo, que Irmã Dulce andou, enfrentou dificuldades, preconceitos com o seu trabalho social, foi forte na fraqueza, tornou-se uma mulher e religiosa à frente do tempo e que seu olhar piedoso alcançou os invisíveis em nome do serviço a Jesus, na pessoa do pobre.

Esta realidade está descrita na narrativa do autor, e transcrita através de depoimentos e registros históricos no livro “além da fé”, que nos comove a cada página e fotografia em que Santa Dulce aparece em meio a crianças negras e pobres, doentes, operários. Causa-me encantamento perceber na leitura deste livro,  que a santidade da vida de Irmã Dulce é retratada dentro dos contextos histórico, político, econômico, familiar e religioso, inspirando-nos a pensar que precisamos viver além da fé dentro de nossas realidades.

Não é em vão que Valber menciona que para entender o apostolado de Irmã Dulce, é preciso ter Jesus como referencial. Foi com esta sustentação que a pequena freira de corpo frágil e voz caridosa entendeu que sua clausura separada da dor dos que sofriam nos arredores não faria sentindo algum. Basta pensarmos que já em meados das décadas de 1930 e 1940, Irmã Dulce concebe a assistência à saúde da população pobre da área dos alagados como um direito e inicia os trabalhos assistenciais numa localidade onde a moradia, a alimentação, o emprego, a educação não eram direitos assegurados. Só em 1988, com o advento da constituição é que o SUS se torna um direito mediado pelas políticas federais, estaduais e municipais de saúde. Quando a constituição de 1988 foi promulgada, os trabalhos assistenciais já se aproximavam de 50 anos de existência.  E assim Irmã Dulce mostrou a dor dos pobres ao mundo e edificou o conjunto das obras sociais Santa Dulce dos Pobres, que atenderam também a mim, na minha necessidade espiritual de devoção, me proporcionando o encontro com esta lindíssima obra social e com a obra literária de Valber Carvalho.

O livro além da fé, veio comigo de Salvador para Conquista, e na estrada, vim folheando, tentando ler, verificando as fontes de pesquisa e imaginando qual foi a emoção e quantas foram as lutas para que a publicação se concretizasse. E li que a sua magnitude foi tamanha que virá um novo volume e uma obra subsequente, as quais desejo profundamente a publicação e divulgação.

Minha recomendação é que o livro “ Além da fé” esteja em nossas casas. Pois para nós católicos baianos Santa Dulce é um exemplo de excelência no serviço a Deus através dos exemplos de seus pais, de sua vida de oração, do amor ao próximo. Para os não Católicos, o livro mostra a importância da caridade diante daqueles invisíveis e “sem futuro”. Me refiro à caridade não como a mera doação de esmolas, mas como o olhar para o outro como nosso semelhante, mesmo estando ele nas piores condições. Para todos os brasileiros o livro “Além da Fé” revela uma geografia da desigualdade social, na qual os pobres encontram somente a caridade religiosa como apoio, nas realidades onde os direitos mais básicos não são assegurados e em cujas ações encabeçadas por uma única mulher mobilizou a sociedade (artistas, prefeitos, governadores, presidentes da república, papa, meios de comunicação) na direção daquela comunidade periférica, que hoje se beneficia de amplas melhorias resultadas do desbravamento caridoso de Irmã Dulce nos territórios da privação.

Assim, temos aqui uma obra primorosa, que importa à sociedade porque representa a história e a geografia da Bahia a partir do trabalho do jornalista Valber Carvalho, em função da vida de Santa Dulce. Recomendo que tenhamos, leiamos, presenteemos e nos abasteçamos desta obra. Que os “rastros da memória” da vida concreta do pequeno “anjo bom da Bahia” não se apaguem, mas se tornem pegadas para orientar nossa caminhada de fé e vida. E que, pelo exemplo da “Santa das Ruas” nunca percamos de vista a defesa da vida, da dignidade e dos direitos sociais para todos, mesmo em tempos em que o outro nos amedronta por ser diferente, o pobre nos assusta por não ter nada a perder e o distanciamento muitas vezes nos convida ao egoísmo.

[1] Doutorado em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (2016); Mestrado em Geografia pela Universidade Federal da Bahia (2011); Graduação em Geografia pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (2006). Atualmente docente da Educação Básica, Técnica e Tecnológica do Instituto Federal da Bahia – IFBA, onde Coordena o Curso Técnico em Meio Ambiente, participa da Comissão Permanente de Sustentabilidade e Educação Ambiental, é membro do Cerimonial Institucional, do Grupo de Pesquisa  em História, Educação, Memória e Espaço (GRUPHEM), desenvolve projetos de pesquisa e extensão nas áreas de meio ambiente, produção do espaço urbano e educação ambiental e leciona as disciplinas: Geografia, Planejamento Urbano, Educação Ambiental, Ciências do Ambiente nos cursos técnicos e engenharias. Na Área Pastoral Santa Dulce dos Pobres faz parte da Pastoral do Batismo e da comunidade Nossa Sra. da Visitação.

 

Doutorado em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (2016); Mestrado em Geografia pela Universidade Federal da Bahia (2011); Graduação em Geografia pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (2006). Atualmente docente da Educação Básica, Técnica e Tecnológica do Instituto Federal da Bahia – IFBA, onde Coordena o Curso Técnico em Meio Ambiente, participa da Comissão Permanente de Sustentabilidade e Educação Ambiental, é membro do Cerimonial Institucional, do Grupo de Pesquisa  em História, Educação, Memória e Espaço (GRUPHEM), desenvolve projetos de pesquisa e extensão nas áreas de meio ambiente, produção do espaço urbano e educação ambiental e leciona as disciplinas: Geografia, Planejamento Urbano, Educação Ambiental, Ciências do Ambiente nos cursos técnicos e engenharias. Na Área Pastoral Santa Dulce dos Pobres faz parte da Pastoral do Batismo e da comunidade Nossa Sra. da Visitação.


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