Reforma da Previdência: “A classe trabalhadora está entregue à própria sorte”, diz cientista político

Foto: BLOG DO ANDERSON

A Reforma da Previdência, proposta pelo presidente da República Jair Messias Bolsonaro, que já foi aprovada pela Comissão de Justiça da Câmara Federal e que vem merecendo a mais veemente oposição de partidos e organizações de esquerda, foi objeto de debate no programa Roda de Conversa, levado ao ar pela Rádio UESB. Um dos convidados foi o Professor Doutor Matheus Silveira Lima, cientista político e professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Leia o artigo na íntegra de autoria do Blog do Fábio Sena.

O sociólogo demonstrou em sua fala que a classe trabalhadora será a principal prejudicada com a reforma proposta pelo Governo Federal, afirmando, entre outras coisas, há no horizonte uma tendência de empobrecimento desta classe trabalhadora, com a perda de direitos e a exposição a condições paupérrimas de trabalho. Para ele, o capital nunca esteve tão bem municiado como agora para impor sua agenda econômica ao conjunto da sociedade, com prejuízos aos trabalhadores.

Ainda segundo o professor Matheus Silveira Lima, as denominadas Reformas do Estado são necessárias, inclusive foram tentadas nos governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff, sem sucesso. O problema, em sua avaliação, é o momento para realização dessas reformas. “Esta reforma não pode ser feita num contexto de decrescimento econômico, de estagnação, de desindustrialização, porque o preço que se paga é muito alto”.

O Blog do Fábio Sena transcreveu as declarações do cientista político e as apresenta em forma de tópicos.

A CLASSE TRABALHADORA E AS REFORMAS

Há uma tendência de empobrecimento da classe trabalhadora, com a perda de conforto ou de direitos, de condições de prover uma vida mais digna para sua família. Na medida em que o trabalhador perde força ele acaba se expondo a trabalhar sob condições cada vez piores, cada vez menos dignas. No mundo globalizado, em que o capital financeiro desconhece fronteiras nacionais, se expande, se capilariza, e as condições para que o capital seja recebido é onde a mão de obra seja barata, onde os custos são menores, com menos direitos trabalhistas… vivemos uma conjuntura que retoma aos anos de 2017 e 2018, em que se fala de reforma trabalhista, que visa tentar flexibilizar direitos, fazer com que o trabalho não seja um empecilho à reprodução do capital. Ou seja: o trabalhador sai de uma reforma como está, enfraquecido. Quase todos os vetores que dizem respeito a essas reformas que estão sendo colocadas no Brasil, que a gente poderia chamar resumidamente de Reformas do Estado, no contexto geral precisam ser feitas. Nós tivemos um governo de esquerda que tentou fazer a Reforma da Previdência, a Reforma Trabalhista, na sequencia tivemos o governo conservador de Temer, mas Bolsonaro está ponto na pauta a reforma do estado, que precisa ser discutida com especificidade em relação a cada tema proposto. Alguns podem ser instrumentos importante de avanço, outros de retrocesso, se a gente pensar na classe trabalhadora.

O que penso como cientista político é que esta reforma não pode ser feita num contexto como o que vivemos de decrescimento econômico, de estagnação, de desindustrialização, porque o preço que se paga é muito alto. Se há uma redução da atividade econômica, é óbvio que essas reformas vão atingir a economia como um todo, mas o sacrifício maior vai ser pago por quem é mais desprotegido historicamente, a classe trabalhadora.

A REFORMA DA PREVIDÊNCIA

Então, não é um bom momento para a Reforma da Previdência, que deveria ter sido pensada e feita num momento de crescimento econômico, quando a força relativa do Estado brasileiro conseguiria amortecer os possíveis danos, que deveriam ser compartilhados por todos, pelos donos do capital, e isso não está sendo feito. a conjuntura hoje não é para ser comemorada pela classe trabalhadora. É uma conjuntura muito difícil, muito dura, e é um momento de muita reflexão seguida de mobilização, tomada de consciência para defesa dos interesses da classe trabalhadora que, no meu entendimento, está sob um forte ataque no momento que ela tá menos protegida para poder suportar, vamos dizer assim, as suas condições básicas de sobrevivência.

DIREITA CONSERVADORA X PAUTAS DE IDENTIDADE

No contexto internacional, de fato, se verifica uma expansão de uma direita mais conservadora do ponto de vista dos costumes e que tem como ponto da fundamentalmente bloquear a circulação de ideias que são, digamos, ligadas às novas identidades, questões de gênero, questões étnicas, de uma vida mais harmônica no sentido de convivência entre os diferentes, fortalecendo a alteridade. Esta pauta incomoda muito. Mas não podemos confundir com a direita liberal, que historicamente converge com uma pauta mais libertária. Então, essa direita conservadora é um problema para a esquerda, que é recém convertida a essa nova pauta de direitos humanos, direitos das minorias. Se você pensar a esquerda até década de 70, você tinha problemas muito claros: no eixo de organização do assim chamado socialismo real os homossexuais eram combatidos, a questão étnico-racial não tinha nenhum tipo de protagonismo, e questões da liberdade da mulher muito menos. Então a esquerda vai se converter a esta pauta identitária, vai se somar à direita liberal que, pelo menos desde o século 19, já tem uma perspectiva de defesa das minorias. Você encontra lá fundamentalmente no livro de Toqueville, chamado A Democracia na América, em que pela primeira vez um autor sistematiza de maneira teórica a ideia de que o direito das minorias precisa ser preservado numa democracia de massas porque na democracia de massas a maioria tende a esmagar a minoria. Dito isso, nesses termos estritamente conceituais, a gente percebe que essa onda chega ao Brasil: ou seja, você tem um governo que está legitimado pela maioria, através das urnas, e que, no entanto, não reconhece o direito à livre existência das minorias, à livre manifestação das identidades, sejam ela identidades de gênero, sexuais, étnico-raciais, e isso é um problema de grandes proporções, porque nós tivemos um governo que poderíamos, forçando um pouco, chamar de uma direita socialdemocrata, que remonta a Fernando Henrique Cardoso, onde o direito à liberdade dessas minorias foi garantido, houve avanços, houve salvaguardas e todo o período que o PT esteve no poder também foi um período de ampliação dessas liberdades de minorias e que nesse novo momento essa nova pauta conservadora tenta reorganizar, vamos dizer assim, o eixo das preocupações da sociedade e que aí a gente vê isso que nós podemos chamar de retrocesso, que é a ideia de que você sai da eleição legitimado por uma maioria e que isso te coloca numa posição inclusive de atacar os direitos das minorias. E urna, eleição, não serve para isso, eleição serve para você legitimar um projeto de governo com prioridades que foram debatidas junto ao eleitorado, mas dentro de um campo de atuação que deve necessariamente respeitar a Constituição e os direitos humanos, e me parece que o atual contexto ele tenta, digamos assim, operacionalizar sua política à margem desses marcos civilizatórios, que é nossa Constituição de 1988 e uma percepção difusa, mas consistente, de respeito aos direitos humanos.

CLASSE TRABALHADORA X FUNCIONALISMO PÚBLICO

Esta é uma questão que não está diretamente ligada ao eixo de prioridade da classe trabalhadora porque são coisas bastante distintas: a condição da classe trabalhadora eu penso que ela é muito mais crítica na medida em que ela, sendo a ponta mais frágil nos estratos sociais que compõem a sociedade, ela está na base de tudo o que se produz, é a parte mais frágil porque é a que menos recebe daquele montante que é produzido. Essa classe trabalhadora está permanentemente sob a condição de ser esmagada na sua própria condição de subsistência física, de fazer sua feira, pagar seu aluguel, pagar o seu transporte público, flertando permanentemente com o desemprego estrutural, achatamento de salário, diminuição de renda, precarização da segurança pública, e isso é grave para a classe trabalhadora porque é ela quem mora nos bairros mais violentos, no caso do Brasil. Tem um transporte de baixíssima qualidade, que atrapalha inclusive a produtividade da classe trabalhadora e a perspectiva de que ela possa trabalhar e estudar e melhorar de vida, porque passa muito tempo de transporte público; e esta classe trabalhadora eu avalio que ela está completamente desprotegida. Por quê? Porque nós temos, como eu falava anteriormente, ali na disputa entre capital e trabalho, o capital está muito fortalecido e nunca esteve tão bem municiado para defender os seus interesses. A classe trabalhadora ela não tem como fazer uma avaliação universal, na Europa, nos Estados Unidos, na América Latina… cada caso é muito particular. No caso do Brasil há uma tendência a se confundir a classe trabalhadora com funcionalismo público. Porque quando a gente remonta o que é estrutura de políticas sociais do Estado brasileiro, que vem do final da década de 20, mas que se aprofunda na década de 30, a gente vai ter o seguinte: os direitos sociais no Brasil eles são reconhecidos através do trabalho formal, ou seja, quem tinha carteira de trabalho no Brasil entre a década de 30 a década de 80 participava de uma série de direitos, como serviço público da área de saúde, podia se aposentar, ETC. Mas nós sabemos que a maior parte da classe trabalhadora brasileira vive na informalidade. Então, nós tivemos ao longo de 50 anos a consumação de um projeto de políticas sociais que privilegiava aqueles que já estavam formalizados na carteira de trabalho e o funcionalismo público. No caso do funcionalismo público, com aposentadorias integrais que lhe colocaram na condição de classe média. Aqui que eu saio do registro de uma conceituação de classe social para de estratificação, porque no Brasil eu penso que é muito mais eficaz do ponto de vista explicativo, e nós temos um funcionalismo que é uma classe média que se aposenta mais jovem, com integralidade, que frequenta a universidade pública, que não mora nas periferias e que na medida em que as políticas sociais elas apresentam limitações ele pode ir ao mercado adquirir a sua proteção, seja o plano de saúde, seja a escola particular de seus filhos, seja a aposentadoria na integralidade, e é importante referir a esse número que contribui com cerca de 10% do montante da Previdência, mas retira quase 50% daquilo que é pago. Então, a Previdência Social no Brasil é um fator de distorção da concentração de renda e que empurra, infelizmente eu preciso falar isso, mesmo sendo funcionário público: nós, funcionários públicos, somos sim um dos ativos mais importantes da distorção da Previdência, e a Previdência é um ativo mais importante das desigualdades sociais que se tem no Brasil. Porque a classe trabalhadora normalmente não se aposenta jovem, porque parte da sua trajetória passa na informalidade e quando se aposenta é com salário mínimo, que não é suficiente para lhe dar uma vida mais digna. Então, essa classe trabalhadora no Brasil ela é permanentemente sub-representada na Reforma da Previdência. A reforma da Previdência que está colocada, portanto, ela é muito ruim ela para a classe trabalhadora, é ruim para o funcionalismo público e ela não mexe com esse elemento que nós temos de distorção que é o funcionalismo público de modo geral, ele é beneficiado. Mas o setor que é mais beneficiado é o Poder Judiciário e o setor Militar, que não vai ter nenhum tipo de equalização, digamos assim, aquilo que nós poderíamos chamar tranquilamente de privilégio. Então, a classe trabalhadora no serviço público vai sofrer revezes, mas que não compromete a sua ascensão à classe média; os setores mais bem posicionados não vão ter mexidos os seus interesses fundamentais e a classe trabalhadora é essa mais uma vez que está entregue à própria sorte. Porque a reforma vai ser dura, mas principalmente para ela que está permanentemente na informalidade e que, portanto, fica ainda mais desprotegida.

CLASSE TRABALHADORA E REPRESENTAÇÃO SINDICAL

Portanto, eu vejo a situação da classe trabalhadora, e digo isso porque convivo com familiares, sobretudo minhas incursões pela zona rural com o trabalhador real, e o drama vivido pelo trabalhador real no Brasil é de desemprego estrutural, falta de políticas públicas, falta de escola de qualidade, falta creche, o transporte público é ruim, normalmente vivem em regiões muito degradadas. Como sair dessa condição se ele é sub-representado? O trabalhador não tem uma representação concreta daquilo que é o seu interesse. É tudo muito filtrado por sindicatos, que são controlados por funcionários públicos que, por definição, são da classe trabalhadora mas é de uma classe trabalhadora da classe média, que filtra muito do interesse direto da classe trabalhadora e muitas vezes usa da classe trabalhadora para fortalecer pautas que são suas. E aí a situação é desoladora, porque imagina o trabalhador rural, quem o representa? É o nosso sindicato que tá representando o trabalhador rural? É o sindicato dos trabalhadores do petróleo, dos funcionários do Banco do Brasil, é o sindicato dos Correios? Jamais. A assimetria na capacidade de renda, na conjunção de fatores que coloca essa classe trabalhadora como despossuída e uma classe média que está no funcionalismo público que, supostamente, fala em nome desse trabalhador, a assimetria é muito grande. Então, a classe trabalhadora no Brasil está entregue à própria sorte e eu penso que nesse sentido o papel que nós, intelectuais, que não temos uma pauta orgânica partidária e que, de algum modo, se dedica fundamentalmente à pesquisa, deve trazer à tona primeiro a contradição, que ela existe. Essa contradição entre estamentos, entre estratos, e pensar que essas reformas do Estado tem na classe trabalhadora como eixo fundamental de organização, porque são essas distorções que fazem do Brasil o país mais desigual do mundo. E eu não vejo no horizonte próximo uma perspectiva de se melhorar elementos da classe trabalhadora, que passa pelo crescimento econômico, criação de emprego formal, fortalecimento de direitos trabalhistas, amparo ao trabalhador em questões fundamentais, como financiamento de moradias, financiamento de transporte público de qualidade, construção de creches, que é emergencial, saneamento básico, escolas de boa qualidade. Metade do orçamento do Ministério da Educação não vai para escola onde está a classe trabalhadora, mas vai para as Universidades. Não é o caso de reduzir o valor empregado na Universidade, porque a universidade cumpre inclusive funções científicas e tecnológicas. A quase totalidade das pesquisas no Brasil são feitas na universidade. Mas uma pauta fundamental é sim o fortalecimento de escolas públicas, principalmente da periferia e de regiões empobrecidas, como é o caso do Nordeste, porque ali que você vai ter um vetor de chegada de política pública de qualidade para quem mais precisa, e eu não tenho visto no horizonte de representações, sejam sindicais, partidárias, entre os intelectuais, uma ideia como nós tínhamos nos anos 30, em que a CLT era fundamental, como tínhamos nos anos 40 inclusive em todo Nordeste Anísio Teixeira dizendo que a escola básica é fundamental, e precisa ser uma escola de qualidade, em dois turnos, onde o jovem aprende inclusive na prática o que havia de mais moderno em termos de pedagogia, que era Pedagogia Pragmática. Uma escola democrática que Anisio Teixeira pensava e fez escolas maravilhosas aqui na Bahia, uma delas ainda existe em Salvador, que é a Escola Parque. Então, esse eixo de prioridade, de onde está a classe trabalhadora, é lá que Estado deve agir contemplando as suas demandas mínimas. Isso desapareceu completamente do Horizonte de debates. E eu vejo a classe trabalhadora nessa situação: ninguém a representa mais.


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